JOSÉ BENTO
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Difícil florir no Inverno.
Mas pétalas afoitam-se:
cresce um murmúrio da escuridão humosa,
coalha ao desembainhar-se contra a neve
ou entre o vento aguçado na pedra
laborada pelos astros, a chuva.
Uma cor dando nome a um lugar,
um aroma a projectar essa cor
e a secreta pulsação
que ordena a geometria de tantos estilhaços
de dispersos vitrais
– resistem e arvoram
essa afirmação que não vacila para ser,
aceita a violência oculta que a enuncia.
Quem investe ramos, caules, fustigadas sebes
de tão precária opulência?
Não lhes perguntes, não me perguntes:
sabem tanto como eu, tudo desconhecemos
para uma resposta supérflua.
Olhamos e o nosso olhar retém
quanto pode: visão breve
para não ser ferida pelo espólio das corolas.
Sabemos que não aguardam a estação propícia,
vendados ao que os ameaça mas não assustaria
se pudessem reconhecê-lo. Não o lamentemos,
nem a nada, a ninguém.
Não existem ventura, desventura
se escolher não é possível.
Aprendemos assim que um florescer
brota em mim, em ti,
e rumo ao ouro se encaminha
para nos encorporarmos sem o termos pedido,
indagado a causa e a lei desta mudança.
Um movimento subjuga e degrada
o espaço em nossa volta até hostilizar-nos?
Existes aí plenamente: és quanto vejo.
Onde estou: isto basta
para encontrarem quem te sou:
anteriores a tudo, cada um de nós
criado pelo outro e para o outro,
hoje e sempre distantes de cuidar
se nos são habitáveis estes dias,
esta casa onde a luz é tanto um gume
como um têxtil musical a exaltar-nos.
Este florir radioso rescende ao meu apelo
e o seu eco em ti a desfolhar-se:
tímidas pétalas abandonam-se em furtivas,
delgadas águas que não poderão lembrar-nos.
Meus olhos no que és hoje compõem
tudo o que foste em mim.
Não interrogam
porque ambos nos vamos descobrindo
em nosso sangue que se despede para unir-nos
sem a isso chamarmos dor:
conhecimento,
transcurso de horas num esvair insone.
(in Silabário, Relógio d’Água, 1992)