22.11.03

[outros melros XII]

FRANCISCO JOSÉ VIEGAS

As perguntas

Não tem rosto, o Deus dos perplexos. Nem voz.
Nem arrependimento. Nem a alegria dos alegres
ou o medo da escuridão. Não posso dizer-vos como
se encontram os seus caminhos, se o melro poisa

nas hortas junto do rio, ao adivinhar a tempestade.
Deus predador, o nosso, prudente, interdito,
que desagrada ao canto mais simples. As nossas
pegadas ficam no deserto, aguardam a passagem

como um fantasma que se desprende da chuva.
Esta luz é incerta, balança sobre as varandas, ameaça
os dias, converte ou desarma todas as palavras certas,

todos os olhos abertos. Não tem rosto, o Deus dos
perplexos, não caminha nos precipícios, não arde
como a urze fitando o céu, não o comove a morte.



(de O Puro e o Impuro, Quasi edições, 2003)

21.11.03

EMMA SANTOS

Preferi fugir. Fugir do exterior. Fugir do interior, abandonar os locais. Refugiar-me na irrealidade. Não sabia bem o que queria: estar no hospital ou voltar a encontrar-me com o mundo. Pensava numa única coisa: não aturar os outros, nem os de fora nem os de dentro.

Decidi. A loucura escolhida escrita nas folhas, esta loucura feita com as minhas palavras e os meus desejos. Lancei-me no delírio como uma imensa extensão de água à minha frente, impelida e atraída pelo meu duplo. Os outros na margem, tentavam recuperar-me, interromper-me. Proibiam-me que ultrapassasse as fronteiras da decência. Investiam, seduziam-me com drogas, ameaçavam-me. Eu fugia para mais longe.

Caminho fora. Inspiro o desdém. Ninguém me vê. Acotovelam-me, tropeçam em mim. Peço desculpa, digo obrigado em voz baixa. Discreta, tímida ao sabor do burburinho. Anulo-me, escura, neutra, invisível, apago-me branca, suja, parda, preta. Tento coser-me com os muros. Os meus olhos cospem vapores sobre o mundo, uma boca de encontro ao vidro. É o meu sangue que se esvai em fumo. O meu sangue aquece e evapora-se. Os meus olhos com laivos de vermelho. Envergonhada, entro num corredor. As vassouras e os gritos das porteiras lançam-me fora. As escadas enceradas, as passadeiras às flores, as entranhas dos prédios são-me vedadas. Não subirei até ao cimo. Uma casa pequena embora, um sítio para repousar, um canto para descansar, uma cama para me deixar ficar, um buraco... Caminho. As pessoas fazem sinais, pensam que não sou bem como elas. Há qualquer coisa, não sabem exactamente o quê. Uma suspeita, uma impressão, é isso. Ou então, nem pensam nada.

(excerto de O Teatro, Assírio & Alvim, 1981 - colecção Gato Maltês - trad. de Manuel João Gomes)

20.11.03

o filho triste de um prosador polaco;
a grande campânula ensanguentada;
a febre; a fome; formigas a fugir;
o médico; o prodígio; a censura
e outros crimes intelectuais.

19.11.03

MANUEL BANDEIRA

Louvação a Rachel de Queiroz


Louvo o Padre, louvo o Filho, o Espírito Santo louvo.
Louvo Rachel, minha amiga, nata e flor do nosso povo.
Ninguém tão Brasil quanto ela, pois que, com ser do Ceará,
em de todos os Estados do Rio Grande ao Pará.
Tão Brasil, quero dizer Brasil de toda maneira
- brasílica, brasiliense, brasiliana, brasileira.
Louvo o Padre, louvo o Filho, o Espírito Santo louvo.
Louvo Rachel e, louvada uma vez, louvo-a de novo.
Louvo a sua inteligência e louvo o seu coração.
Qual maior? Sinceramente, meus amigos, não sei não.
Louvo os seus olhos bonitos, louvo a sua simpatia.
Louvo a sua voz nortista, louvo o seu amor de tia.
Louvo o Padre, louvo o Filho, o Espírito Santo louvo
Louvo Rachel, duas vezes, louvada, e louvo-a de novo.
Louvo o seu romance: O Quinze e os outros três;
louvo As três Marias especialmente, mais minhas que de vocês.
Louvo a cronista gostosa.
Louvo o seu teatro: Lampião e a nossa Beata Maria.
Mas chega de louvação, porque por mais que louvemos,
nunca a louvaremos bem.
Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, amém.

(de Poesia completa e prosa, J. Aguilar, 4ª ed: Rio de Janeiro, 1990)
Do outro lado do mar chega uma simpática colaboração a propósito do poema de Manuel Bandeira dedicado a Rachel de Queiroz, publicado aqui ontem.
Vem da Márcia Maia que tem um blog de prosa, arte e vida e outro de poesia, arte e vida - ambos muito simpáticos e que ficarão, a partir de agora, no meu roteiro de visitas diárias.

(vai, a seguir, o poema de Bandeira com outro arranjo gráfico e a respectiva referência da origem)
G. K. CHESTERTON

Não sei de que língua se julga ter vindo a democracia, mas deve admitir-se que a palavra deve fazer agora parte de uma língua chamada jornalês.

(da Autobiografia, trad. e notas de Luís de Sousa Costa, Livraria Morais editora, 1960 - Círculo do Humanismo Cristão)

18.11.03

MANUEL BANDEIRA

Louvo o Padre, louvo o Filho,
o Espírito Santo louvo.
Louvo Rachel, minha amiga
nata e flor do nosso povo.
Ninguém tão Brasil quanto ela,
pois que, com ser do Ceará,
tem de todos os Estados,
do Rio Grande ao Pará.
Tão Brasil: quero dizer
Brasil de toda maneira
- brasílica, brasiliense,
brasiliana, brasileira.
Louvo o Padre, louvo o Filho,
o Espírito Santo louvo.
Louvo Rachel e, louvada
uma vez, louvo-a de novo.
Louvo a sua inteligência,
e louvo o seu coração.
Qual maior? Sinceramente,
meus amigos, não sei não.
Louvo os seus olhos bonitos,
louvo a sua simpatia.
Louvo a sua voz nortista,
louvo o seu amor de tia.
Louvo o Padre, louvo o Filho,
o Espírito Santo louvo.
Louvo Rachel, duas vezes
louvada, e louvo-a de novo.
Louvo o seu romance: O Quinze
e os outros três; louvo As Três
Marias especialmente,
mais minhas que de vocês.
Louvo a cronista gostosa.
Louvo o seu teatro: Lampião
e a nossa Beata Maria.
Mas chega de louvação,
porque, por mais que a louvemos,
nunca a louvaremos bem.
Em nome do Pai, do Filho e
do Espírito Santo, amén.

(da edição do Jornal de Letras de 12 de Novembro de 2003 - sem indicação do livro de origem nem da data)
RACHEL DE QUEIROZ

Nasceu em 1910, em Fortaleza, capital do Ceará, Brasil.
Escreveu, antes dos vinte anos, um dos romances mais belos da literatura brasileira contemporânea, a que se seguiu uma vasta obra, muito marcada pelo neo-realismo (Rachel foi membro do Partido Comunista Brasileiro) e repartida por ficção, teatro, crónica e infanto-juvenil, à qual foram atribuídos inúmeros prémios. Foi a primeira mulher a entrar para a Academia Brasileira de Letras, em 1977.
Morreu no dia 4 deste mês.


O pequeno ia no meio da carga, amarrado por um pano aos cabeçotes da cangalha.
De vez em quando, levava a mãozinha aos olhos, e fazia rah! rah! ah! ah! numa enrouquecida tentativa de choro.
Cordulina chegava-se à burra para o consolar, ajeitava-lhe o chapéu de pano na cabeça, até que um dos menores gritava:
- Olha, mãe! Os pés da zabelinha! olha o coice!
Chico Bento fechava a marcha, com o cacete ao ombro, do qual pendia uma trouxa.
Mocinha, de vestido engomado, também levava sua trouxa debaixo do braço, e na mão, os chinelos vermelhos de ir à missa.
O sol ia esquentando. De cima da cangalha, o menino chorou com mais força, debatendo-se, até que Cordulina o retirou, com medo de uma queda.
Pô-lo no quarto; logo uma briga se armou entre os outros, num assalto aceso ao lugar na cangalha; na balbúrdia da disputa, eles se confundiam e só se podia distinguir, de momento a momento, um murro, um rasgão, e nuvens de poeira.
Chico Bento, intervindo, trepou o menor. E os outros, por trás do pai, vingavam-se, estirando a língua, com gestos insultuosos mas perdidos porque o cavaleiro não os via, mergulhado na alegria de sua vitória.
Súbito, sua vozinha estridulou num grito comovido:
- Olha a Rendeira!
E apontava para uma vaca pintada de preto e branco, que, magra e quieta à beira da estrada, parecia esperar a família fugitiva para uma derradeira despedida.
Cordulina recomeçou a chorar; o próprio Chico Bento passou rapidamente a manga pelo rosto.
A Rendeira fitou em todos os seus grandes olhos dolorosos, donde escorria uma lista clara sobre o focinho escuro, como um caminho de lágrimas.
Só Mocinha olhou a rês com indiferença, ajeitou na mão as chinelas, e continuou a andar no seu passo macio, tão rápido e leve que mal esmagava os torrões quebradiços do chão.

(excerto de O Quinze, 1930)
G. K. CHESTERTON

No número 999 do vasto catálogo da biblioteca dos livros que eu nunca escrevi (todos eles mais brilhantes e persuasivos do que aqueles que escrevi) está a história de um bem sucedido cidadão que parecia esconder um segredo negro da sua vida. E acabou por ser descoberto por detectives que ainda brincava com bonecas ou com soldados de chumbo ou qualquer outro insolente jogo de infância. Posso dizer com toda a modéstia que eu sou aquele homem em tudo, excepto na solidez da reputação e na prosperidade comercial. Isto era talvez ainda mais verdadeiro aplicado ao meu pai; mas eu, pelo menos, nunca deixei de brincar e sempre desejei que houvesse mais tempo para isso. Quem me dera que não nos tivéssemos dispersado em coisas frívolas, tais como leituras e literaturas, no tempo que poderíamos ter dado aos trabalhos sérios, sólidos e construtivos, como por exemplo recortar figuras em cartão e nelas colar coloridas lantejoulas. Ao dizer isto, eu chego à terceira razão que me leva a tomar o teatro de bonecos por um livro aberto, e a respeito da qual haverá por certo muito malentendido, devido às repetições e aos estafados sentimentos que, de certa maneira, vieram aderir a eles. É uma daquelas coisas que foram sempre mal compreendidas pela simples razão que foram demasiado explicadas.

(da Autobiografia, trad. e notas de Luís de Sousa Costa, Livraria Morais editora, 1960 - Círculo do Humanismo Cristão)

17.11.03

FRANCISCO JOSÉ VIEGAS

VERSOS ANTIGOS


se a noite se perder em ritmos de água, eu morrerei.
não há palavra mais doce que aquela que se despe
lentamente na baía, na nostalgia de si mesma.
outrora era a evidência do verso, rumor de aves,

lagos espirais caminhos por entre fontes e azuis
danças de deus nos longínquos areais, mas as
incertezas acumularam-se depois do sono, lembranças
da infância, da fronteira, dos açudes ruidosos.

eu morrerei se ouvir de novo essa voz, por isso
afastai-a célere dos oceanos, das portas entreabertas,
dos segredos. essa palavra é doce e mortífera: amai-a

longe de mim onde o silvo, o alarme das estações, é uma
espada, um gume à deriva no corpo. ficarei entre
sinais, escombros, longe das margens dos lagos, leve.

(de Todas as Coisas, editorial Caminho, 1988)
G. K. CHESTERTON

Realmente, as coisas de que nos lembramos são aquelas que esquecemos. Quero dizer que, quando a recordação recua pronta e rápida, atravessando as resistências do esquecimento, ela surge num instante tal qual fora. Se pensamos nela repetidas vezes, enquanto a sua evidência essencial permanece verdadeira, ela torna-se cada vez mais a nossa própria recordação da coisa e cada vez menos a coisa recordada.

(da Autobiografia, trad. e notas de Luís de Sousa Costa, Livraria Morais editora, 1960 - Círculo do Humanismo Cristão)

16.11.03

[outros melros XI]

JORGE DE SOUSA BRAGA

NINHOS


Dias antes de morrer, acordou com vontade de ir aos ninhos. Tentou levantar-se da cama. Que queria trepar às árvores. Que sabia de um ninho de melro abandonado. Disseram-lhe que a primavera já tinha passado, que as árvores estavam escorregadias, que já não havia árvores, que os pássaros já não sabiam fazer ninhos... Mas ele continuava a insistir. Entrou depois num longo delírio. De vez em quando pronunciava palavras como musgo cor-de-rosa, lama seca, palavras que se foram tornando cada vez mais indistintas. Por último, parece que chilreava.

(de Os Pés Luminosos, 1987)
[outros melros X]

FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO

DA ANALOGIA NO MUNDO


Três cantores negros
com patas de aves, esguias,
assustadiços sempre,
esquivos mas fiéis,
não abandonam o Mundo,
presente em grande parte
naquelas árvores.

Três árvores e três cantores?
Ou apenas a ilusão
de que também as árvores
cantam, depois
de tanto amor?
E o mundo está
em três melros, hibiscos?

(de As Fábulas, Quasi edições, 2002)