30.11.07

MICHELANGELO MERISI DA CARAVAGGIO



A Morte da Virgem, 1606
óleo sobre tela
369x245 cm
Paris, Museu do Louvre


AMADEU BAPTISTA

CARAVAGGIO: A MORTE DA VIRGEM


Ela é a virgem,
embora tenha conhecido muitos homens
e os seus filhos peregrinem pelo mundo
com lágrimas nos olhos
por não terem mãe.

Já cadáver, encontrei-a no Tibre,
e trouxe-a para aqui para a pintar,
sabendo que os frades não me irão
indultar a ousadia
– hão-de dizer que a tela é indecorosa
e que no meu trabalho nunca largo
o escândalo que me é próprio,
sempre tocado pela lascívia.

Na bacia de cobre está um preparado
com vinagre
para lavar o corpo da defunta,
sendo que aos pés da morta
é Maria Madalena que se vê,
com a cabeça caída
sobre o peito
por ser fundo o desgosto
de ver a amiga morta
– tinham chegado a Roma
há muito tempo
e conheciam-se
de pequenas aventuras nas tavernas,
sendo que às vezes partilhavam a cama
e os clientes,
ou, sendo caso disso, uma manta
no Inverno,
ou algum pão,
escasso,
o mais das vezes.

No centro da pintura estão três apóstolos.
A razão por que um deles está estupefacto
e ergue a mão direita
tem a ver, somente, com o drama
de a morte ser injusta,
usurpe alguém divino,
ou um miserável que não tenha
onde cair morto.

Mateus,
de todos os apóstolos o mais sábio,
porque estudou nos livros e na vida,
sabe que não há bálsamo eficaz
para quem parte,
por muito que tenha já sofrido;
por isso, o represento assim,
inconformado,
com uma mão aberta, e outra fechada:

a vida é tudo o que nos resta
estando vivos – o que vem a seguir
nunca se sabe que dimensões comporta,
mesmo que haja luz no outro lado
e a promessa de bondade seja cumprida.

Ao lado de Mateus, pintei Tiago,
que presume que a mulher não faleceu,
mas só se encontra adormecida
– se deu à luz, um dia,
e os seus filhos estão aí a comprová-lo,
ainda que dispersos pelo mundo,
é porque o transe da morte ultrapassou,
e dorme, apenas, para que conheça a eternidade
e influencie o céu
com a sua doçura perene de mulher.

O outro é Lucas,
que, a olhar em frente,
está a tentar compreender o que é um corpo,
essa engrenagem obscura,
que, sem álibis,
nos reflecte os métodos de Deus
– que dá, a cada um, um modo de sorrir e de chorar,
um modo de sofrer e de amar,
um modo de nascer e de morrer.

Atrás dos três apóstolos,
está disposto o mundo
– é gente que encontrei pelos mercados
e, em silêncio, dá testemunho
de que há na terra um tempo
em que se deve duvidar do que é certo,
sendo que certa há-de estar sempre a morte,
mas, também, o trabalho que aguarda
pelas nossas mãos,
na oficina,
nos campos
ou em casa.

Um é curtidor de peles,
outro negoceia cereais e vinhos,
outro faz cestos, e vende-os pelas praças,
outro é talhante,
um outro é ferrador e é barbeiro,
outro é astrónomo,
outro copista,
outro é soldado,
e outro pede esmola nas vielas,
a gritar a quem passa por piedade.

O mundo, pois.
Onde esteja a morte
é bom que um pintor figure o mundo,
para que no jogo de sombras fique incluso
esse jogo mais duro do confronto
com a realidade,
onde o próprio veludo tem cores cruas.

É isto que os frades me não perdoam
– o meu desassombramento perante o mundo,
a concisão patente no que faço,
chamando-lhe indecência
e insinuando que vesti de vermelho esta mulher
por gozo pessoal e por volúpia.

Não é verdade.
Antes de mais, porque a encontrei assim.
Depois, porque pensei que numa mulher não há pecado,
seja ela quem for e de onde venha.
Por último, porque tratando-se da virgem,
só mesmo o sangue a pode vestir,
o sangue espesso e forte,
de modo que quem olhar esta pintura
saiba o que vê, imediatamente:

uma mãe
que o sofrimento jamais abandonou,
em tudo o que viveu
– os perigos que há ao dar à luz,
a fuga para o Egipto,
a ameaça concreta no Sinédrio,
a árdua resistência necessária
para perscrutar em qualquer cruz
a iniquidade que o destino alcança.

Inchado,
maculado,
desfigurado
tem o seu rosto esta mulher morta,
adormecida.

E eu sou Caravaggio,
que luto, denodadamente, com a arte
para que a tragédia,
sagrada ou profana,
se represente igual à sua gravidade,
cantem, ou não, os anjos as hossanas,
goste-se, ou não se goste, do que faço.

A vida é turbulência
– e é assim que chega às minhas telas,

e é assim que o que pinto,
entre claros e escuros,
me proclama.

(de Poemas de Caravaggio, inédito - vencedor do Prémio Nacional de Poesia Natércia Freire, 2007)

29.11.07


O poeta Amadeu Baptista foi galardoado com o Prémio Nacional de Poesia Natércia Freire 2007, promovido pela Câmara Municipal de Benavente, com a obra "Poemas de Caravaggio".

Foram ainda atribuídas Menções Honrosas às obras "Principia Matemathica", de Carlos Rodrigo da Silva Vaz, "As Limitações do Amor são Infinitas", de Rui Costa e "A Educação do Mal", de Fábio Nunes Viana Mendes Pinto.

Este prémio, no valor de cinco mil euros, foi atribuído pelo segundo ano consecutivo, e é patrocinado pela Companhia das Lezírias.

(também anunciado aqui, aqui, aqui, aqui e aqui)

25.11.07

FERNANDO GRADE

COZINHA EM PÓ



Este domingo breve vai trazer
zângãos ou (apenas) bagos de uva.
A água sobe do peixe
não sabe a ratos brancos nem a goivo
sabe a peixes.
E o rosto que lanças aos javalis?

Os teus dentes rápidos de madressilva
são a minha única metáfora:
salsa misteriosa como festivas carroças
zunindo fuziladas de morangos.

A arte bucólica do azinho ao absinto
não passa de um compêndio
para melhor esfaquear os duendes!

Todos tivemos o nosso
almoço
de pedras, pequeno
fascínio de aves degoladas em casto puré
de castanha, o som do banquete ainda é pólen
em salas que - das ruínas - guardaram o calor bom
dos bolos.

De noite, à luz de velas azuladas, os répteis zelam
com os seus moncos manhosos.
E a paz dos rosais esteja convosco.

Nisto, pardo e rubro, o rio
esfacela as próprias piranhas
enquanto a água do peixe
não sabe a ratos brancos nem a goivo
sabe a peixes.

Quando será que as montanhas
virão beber
à minha triste mão?

Estoril
- 17 e 19 de Outubro de 1985


(de Alma Burra, edições Mic, 1987)