23.10.06

ANTÓNIO RAMOS ROSA

Do lado da melancolia com as árvores das estrelas


Em lucidez plana de espaço silencioso
e de tensão repousante estão as árvores do sangue
com as suas aves brancas e seus diademas brancos
Os tendões da atenção sustentam a coluna branca
sob a chuva deslumbrante que as pombas atravessam
com frescor estalidos que vão quebrar a cal

Estão as árvores do sangue em tensão repousante
e dir-se-ia que vêem a lua vacilante sob a chuva
e que respiram o odor da chuva o odor lento
e fresco da terra de humidade vermelha
e um navio sob uma nuvem passa na lentidão da chuva
enquanto um pássaro no parapeito de um terraço
desfere duas notas de fina felicidade

O silêncio das árvores vem de um ouvido azul
e perfuma o espaço de deslumbrante solidão
Há uma plácida harmonia entre as árvores dos campos
e as ténues árvores das ramificadas artérias
Ouve-se o que se esconde o seu pudor vegetal
e os nomes levantam-se como vagas ondas
e pousam lentamente como melancólicas aves
de um Outubro em que brilha um sol cor de laranja

(in Espacio Espaço Escrito 11/12 - Outono/Inverno 1995)

22.10.06

[para uma antologia de bicicletas - 12]

ANTON TCHÉKHOV

(...) Vamos então a andar e, de repente, imagine só, passam de bicicleta o Kovalenko e, atrás dele, a Várenka, toda vermelha, ofegante, mas alegre e feliz.
- Nós - grita -, vamos à frente! O tempo está tão bom, tão bom que é um terror!
E desapareceram ambos. O nosso Bélikov passou da cor verde à branca e como que petrificou. Parado, a olhar para mim...
- Desculpe, mas que é isto? - pergunta. - Estarei a ver bem? Será que é decente professores de liceu e mulheres andarem de bicicleta?
- Mas que indecência há nisso? - digo-lhe eu. - Que pedalem, faz-lhes bem.
- Mas como é possível? - grita ele, espantado com a minha calma. - O que está o senhor a dizer?!
(...)
No dia seguinte (...) arrastou-se para casa dos Kovalenko. Várenka não estava, apanhou só o irmão.
(...)
- Tenho mais umas coisas a dizer-lhe. Há muito que estou ao serviço, e o senhor está ainda no princípio, por isso considero meu dever, como colega mais velho, fazer-lhe esta advertência. O senhor anda de bicicleta, mas esse divertimento é de todo indecoroso para um educador da mocidade.
- Por que razão? - perguntou Kovalenko na sua voz de baixo.
- Será que ainda é preciso explicar, Mikhail Sávvitch, será que não compreende? Se o professor vai de bicicleta, o que resta aos alunos fazer? Resta-lhes andar fazendo o pino! Uma vez que tal não foi autorizado por uma circular, está proibido. Ontem fiquei aterrorizado! Então, quando vi a sua irmã, turvou-se-me a vista. Uma mulher ou uma menina de bicicleta é um horror!
- Diga lá, o que deseja concretamente?
- Uma única coisa: adverti-lo Mikhail Sávvitch. É um homem jovem, tem o futuro pela frente, deve portar-se com muita prudência; ora, o senhor falta sempre à suas obrigações, falta sempre! Anda de camisa bordada, passeia-se constantemente na rua com uns livros quaisquer, e agora, para cúmulo, a bicicleta. Se o director souber que o senhor e a sua mana andam de bicicleta, se isso chegar aos ouvidos do inspector... Acha bem?
- Que eu e a minha irmã andemos de bicicleta, ninguém tem nada a ver com isso! - disse Kovalenko e enrubesceu. - E a quem se mete nos assuntos da minha família e da minha casa só tenho que o mandar para o diabo que o carregue.

(excertos do conto Um Homem na Sua Concha, in Contos de Tchékhov - volume II, tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra, Relógio d'Água, 2001)