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8.6.11

A muita gente não terá ocorrido que a escherichia coli tem um papel importante na obra de um dos maiores poetas portugueses do século XX, o que deve ser caso único na literatura europeia.» - Vasco Graça Moura, Diário de Notícias, 8 de Junho de 2011]

VITORINO NEMÉSIO


ESCHERICHIA


Funérea Beatriz de mão gelada
Mas única Beatriz consoladora.
_____________Antero de Quental, SONETOS.
Olha, Daisy: quando eu morrer tu hás-de...
______Álvaro de Campos, Soneto já Antigo.

I

Mandei fazer o electrocardiograma
À minha «Beatriz de mão gelada»:
Mas fui eu, fui eu só que fui à cama,
Eu, claro! não Beatriz, nem Dante, eu nada!

«Mas única Beatriz consoladora»
Então não era a Morte reservada
A quem tem coração pela vida fora
E por ele sobe em hélice aminada?

Em gráfico de sismo a sina veio
Nessa foto cardíaca: — «Receio
Que morra, Daisy!» Não: «Que morra, Dolly!»

Pois eu não sou o Fernando Pessoa
Ou Antero, nem em inglês seu nome soa,
Que minha Musa é Escherichia Coli.

II

Escherichia ou Beatriz, que importa o nome
Se ambos me soam igualmente belos?
A prometida morte nos consome
Como flor prometida nos carpelos.

Assim tu, Escherichia, és meu tormento
E nocturno tremor, Beatriz funérea!
Quem nasceu para casto fingimento
Afinal pode amar uma bactéria.

III

Pego em Escherichia ao colo,
Musa micrónica, etérea,
Mas não já de éter sulfúrico
Senão feminil bactéria.
Por ela todo estremeço
Em suor e ácido úrico!


TUBO DE ENSAIO

Árvores do Canadá, uma por uma,
A caminho de Otawa, de autocarro,
Propõem seus galhos hibernais ainda
À minha angústia já primaveril.
Com tão pouca matéria a fotossíntese,
Que oxigénio de amor espero eu delas,
Com que carbono as poderei amar?
Porque, enfim, eu morrendo dou-me aos bosques,
A tal selva de Dante é a dor da espécie,
E o mezzo dei camin aqui passar.
Só é estranho que fracos pensamentos
Eu verta nestes tubos de ensaiar:
Eu, que, por causa de Escherichia Coli,
Quase não sei (como se diz?) — meiar...
A Poesia é um louco laboratório,
E eu dispo a bata para não chorar.

11 de Maio de 1971.


MICRO-MORAL

No Julho sossegado dos charcos
Um anúrio respinga,
Mas outro é o visco elástico:
Uma ideia, um remorso.
O que o poeta pensa ou sente é que arfa em alvo:
E, de Esopo a Galvani,
Como uma ancila a rã se serve à mesa do homem.

Oh, dócil sujeição dos bichos,
Nossos irmãos moleculares,
Imolando nas aras centrifugadas vida,
Dando o pobre corpinho ao manifesto da Certeza
Que, se não consola a alma,
Ao menos explica e previne:
À santa mesa da Preparação
O pombo traz seu músculo,
O cachalote a fibra,
O ratinho o seu fígado,
O cavalo sua heme,
Cada qual como mãe que ao filhinho amamenta.

Quanto a Escherichia, casta musa, a entranha aos vírus coxos
Cede por nosso amor, maternal, e rebenta.

14 de Julho de 1971.


(de Limite de Idade, 1972)

25.7.10

VITORINO NEMÉSIO


O AFILHADO


O meu afilhado epiléptico veio ver-me,
Veio verme.
Verme não é. E, se fosse, isso que tinha?
os anelídeos têm os seus anéis elásticos,
Num começo de élan superior, bem soldado,
A blocos de controle e direcção,
Enquanto que ele a perde em centros altamente sinápticos
E fica pobre e triste entre os apáticos.

O meu afilhado epiléptico
Veio ver-me,
Veio verme,
Veio ecléctico,
Entre os que sim e os que não,
Quase empastado e céptico
Num sorriso de vã resignação.
Fosse ele verme, o pobrinho, e até crustáceo!
Teria o sistema nervoso ao longo da barriga,
Táctico nas antenas de precisão, como a formiga.
Mas tem espinha dorsal e cabos de nervo de alto diâmetro,
Mas deviam ser rápidos e senhoris na opção,
Mas às vezes não são...
O meu pobre afilhado epiléptico,
Eterno aprendiz de sapateiro,
Aplicando serol a fibras de coiro para botas
E fazendo virolas
De meias solas
Rotas.

- E ganhas...? – lhe pergunto.
- Vinte paus, meu Padrinho,
«E não posso beber vinho:
«Nem um copinho,
«Meu Padrinho!»

O meu afilhado epiléptico veio ver-me,
E pensei no Pessanha:
«Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído!
No chão sumir-se, como faz um verme...
»
Vinte paus é o que ganha
O meu afilhado epiléptico,
Com os dedos no unto.

Patético, hein?
Mas – mudemos de assunto.

28 de Junho de 1971.


(de Limite de Idade, 1972)

11.8.09

VITORINO NEMÉSIO

CANTIGAS À ILHA TERCEIRA,
À CIDADE, À PRAIA, E AOS MONTES


Lá vai a Ilha Terceira
Por riba dos mares afoitos,
Carregadinha de amores,
De mistérios e biscoitos!

Esta nossa Ilha Terceira
Sempre foi alto lugar:
Em amores, bodos e toiros
Fica bem a desbancar.

A Ilha Terceira é fêmea,
Sã Miguel saiu varão,
A Graciosa rapariga
E Sã Jorge tubarão...

Olha os Ilhéus a Sã Bento,
Olha Sã Jorge à Feiteira!
Olha o meu amor comigo
Numa cisma verdadeira!

A nossa Ilha Terceira
Em dois pontos fica atrás:
De Deus do Céu o de ti
Que tanta graça lhe dás!

A Graciosa lá longe
Quando te viu na Sarreta
Teve tanta invejidade
Que de roxa ficou preta!

Ó Angra, nobre cidade,
Que tens baraço e cutelo!
Vê-se a croinha do Pico
Das muralhas do Castelo.

Não subo ao Monte Brasil,
Não sou facheiro nem facho:
Tenho o navio no peito,
Quando o quero sempre o acho.

Ó leal cidade de Angra,
Mimória do meu amor,
Pisão da minha alegria,
Castelo da minha dor!

Angra, maioral cidade,
Desterro do Gungunhana,
Onde fui às cavalhadas
No meu cavalo de cana.

Ó Angra da fidalguia
E da procissão do Triunfo!
Em amores puxei-lhe espadas,
Ganhou-me a dama do trunfo.

Eu fui aos toiros de praça
No dia de S. João:
O meu bem era o capinha,
Atirei-lhe o coração!

Não há terra como a Praia,
Nem abrasão como o seu,
Não há gente como aquela,
Não há amor como o meu!

O meu bem não é da Praia
Porque a sorte na no quis,
Mas como eu nasci na areia
Lá o plantei de raiz.

Ó Praia, muro da fama,
Vila de tanto autorizo,
Só te faltava aquele anjo
Para seres o paraíso!

A Praia é peixe de caldo,
Damasqueiros, escrivães,
E os filhos que vão prà América
Contra vontade das mães.

Quando chegou a Sã Lazro
O meu bem adivinhou
Que eu gostava da ermidinha
Que o verde junco juncou.

Lá foi ver o cemitério
Cheio de saudades minhas
Plantadas pelo Saldanha
Com pena das lazarinhas.

Fez os olhos mais compridos
(Oh que lindo modo o seu!),
Lá disse: «Quero esta cova
Pra me enterrar mais o meu!»

Quatro portões tinha a Praia,
O das Chagas era um:
Falta o da Luz dos teus olhos
E não sei de mais nenhum.

Olha a Praia espaireçosa
Co ua baía daquelas,
E o meu amor embarcado
Dentro das suas janelas!

Quatro torres tem a Praia:
Espital, Cambra e Matriz;
Falta a torre do teu peito,
Quem no sabe é quem no diz!

Sã Bertolameu é faca,
Sã João uma águia tem:
Troixe no bico palhinhas
Pràs meninas de Belém.

Sã Carlos é espaircimento,
Pico da Urze desvio,
As Bicas são n'os teus olhos,
Tuas lágrimas em fio.

O meu amor é das Cinco,
Para lá de Sã Mateus:
É daquelas Cinco Chagas
Que temos do amor de Deus.

A Sarreta são romeiros,
Santa Barba caras lindas,
As Doze – doze confeitos
Que tu, meu anjo, me guindas.

Os Altares é casamento,
Os Biscoitos vinho novo,
Raminho festa de igreja,
A Terceira pão e povo.

Quatro Ribeiras é lenha,
Biscoito Brabo brabeza,
O das Colmeias é mel:
Terceira, tanta beleza!

Ó Agualva do alvoredo,
Da farinha e do castanho,
Ó mãe daquela beleza
Duma tia que lá tenho!

Nossa Senhora da Ajuda
É a mãe de Vila Nova,
Branquinha a pé do Calvário
Como galinha na cova.

Sã Brás do estreito! se diz
À goela do engasgado.
Viva a terra da Mariana,
Com flores nos cornos do gado!

As Lajes era pão alvo,
Agora é «olha o balão!»
E toiradas, «coisa braba!»
Com favica pelo chão.

Cabo da Praia é tabaco,
Pontinhas teia que eu deite,
Cá'da Ribeira o meu quarto,
Canada dos Pastos leite.

Ah, Porto Martim das uvas,
Baga de faia cheirosa,
Minha maçã redondinha,
Pedra negra preciosa!

A nossa Fonte Bastarda
É uma filha da mãe
Que nasceu como um jarrinho
Das muitas grotas que tem.

Ribeira Seca molhada
De leite e de vinho novo,
Minha galinhinha branca,
Massa cevada! meu ovo!

Dizem que a Vila que é feia...
É linda como uma moça!
Teve Cambra e o prevelégio
De lá passares de carroça.

Porto Judeu são casinhas,
Santo Amaro boa vista,
Feiteira uma presa à prova
Da alma que lhe resista.

No guião da Ribeirinha
Vê-se a firmeza do moço
Para trastejar a casa
E pôr a corda ao pescoço.

Terceira, volta da ilha
E moças pelas paredes,
E este cego de cantar
Aquela que vós não vedes!

Pobre da Ilha Terceira!
Coitado de quem é mãe!
Mesmo se um filho é queimado,
Teve as dores... quere-lhe bem!

E as canadas que esqueci
Lá no céu terão a palma:
Seja a terra da Terceira
A nossa coberta de alma!

(de Festa Redonda, 1950)

24.12.08

[muita pressa e pouco amor]

VITORINO NEMÉSIO

NATAL CHIQUE


Percorro o dia, que esmorece
Nas ruas cheias de rumor;
Na minha alma vã desaparece
Na muita pressa e pouco amor.

Hoje é Natal. Comprei um anjo,
Dos que anunciam no jornal;
Mas houve um etéreo desarranjo
E o efeito em casa caiu mal

Valeu-me um príncipe esfarrapado
A quem dão coroas no meio disto,
Um moço doente, desanimado…
Só esse pobre me pareceu Cristo.

(de O Pão e a Culpa, 1955)

9.7.08

VITORINO NEMÉSIO

NOMEIO O MUNDO

Com medo de o perder nomeio o mundo,
Seus quantos e qualidades, seus objectos,
E assim durmo sonoro no profundo
Poço de astros anónimos e quietos.

Nomeei as coisas e fiquei contente:
Prendi a frase ao texto do universo.
Quem escuta ao meu peito ainda lá sente
Em cada pausa e pulsação, um verso.

14.9.59

(de O Verbo e a Morte, 1959)

21.7.05

VITORINO NEMÉSIO

26.


O anoitecer situa as coisas na minha alma
Como as cadeiras arrumadas
Quando os amigos partiram.
Meus degraus ainda têm a passada do adeus,
Lá quando uma palavra cria tudo,
E o resto, fechada a porta,
É posto nas mãos de Deus.
Então, à minha janela,
Tudo repousa e larga o aro dos conjuntos,
Tudo vem, com um gesto secreto e confiado,
Pedir-me o molde e o amor do isolamento,
Como se um desconhecido
Passasse e pedisse lume
E eu, sem reparar, lho estendesse:
Quando quisesse conhecê-lo,
Só a minha brasa ao longe,
Na noite que se faz pelo peso dos rios
E vive de fogo dado.
Assim nocturno, sou
O suporte de quem não tem para consciência,
Que é como não ter para pão:
As coisas cegas
Prendem-se a mim,
Ao meu olhar, que é único na noite
Pelo seu grande alcance de humildade,
E fico cheio delas,
Como estes sítios ermos, junto de uma cidade,
Cemitérios de tudo, lugares para cães e bidons velhos;
Fico cheio da pobreza e do sinal das coisas,
Como um retrato de gente pobre é pobre e gauche
(Vale a recordação),
Mas sinto-me, ao mesmo tempo, seco e cheio de tacto
Como se fosse o seu bordão.

(de Eu, Comovido a Oeste, 1940)

9.2.05

VITORINO NEMÉSIO

SILÊNCIO

Silêncio é peso de Deus.
Levantar a voz começa
A pôr o homem sozinho
Como o morto numa essa.

Só o poeta, calado,
Écomo a espada dura
E o juízo formado.
Sua mão, no joelho,
Dá a medida pura
De um sonho muito velho.

Não dizer nada!
Ter um fato de lã
E a mão nele, apanhada
A maçã
Da promessa...
Mão de meu tio antigo,
Era essa, era essa
Que não trago comigo!

(poema inicial de Nem Toda a Noite a Vida, 1952)

5.4.04

VITORINO NEMÉSIO

PRECE


Meu Deus, aqui me tens aflito e retirado,
Como quem deixa à porta o saco para o pão.
Enche-o do que quiseres. Estou firme e preparado.
O que for, assim seja, à tua mão.
Tua vontade se faça, a minha mão.

Senhor, abre ainda mais meu lado ardente,
Do flanco de teu Filho copiado.
Corre água, tempo e pus no sangue quente:
Outro bem não me é dado.
Tudo e sempre assim seja,
E não o que a alma tíbia só deseja.

Se te pedir piedade, dá-me lume a comer,
Que com pontas de fogo o podre se adormenta.
O teu perdão de Pai ainda não pode ser,
Mas lembre-te que é fraca a alma que aguenta:
Se é possível, desvia o fel do vaso:
Se não é, beberei. Não faças caso.

(de O Verbo e a Morte, 1959)

12.3.04

[SONETOS À SEXTA-FEIRA]

GOMES LEAL


Alucina-me a Cor! - A Rosa é como a Lira,
A Lira pelo tempo há muito engrinaldada,
E é já velha a união, a núpcia sagrada,
Entre a cor que nos prende e a nota que suspira.

Se a terra, às vezes, brota a flor que não inspira
A teatral camélia, a branca enfastiada,
Muitas vezes, no ar, perpassa a nota alada
Como a perdida cor de alguma flor que expira...

Há plantas ideais de um cântico divino,
Irmãs do oboé, gémeas do violino,
Há gemidos no azul, gritos no carmesim...

A magnólia é uma harpa etérea e perfumada.
E o cacto, a larga flor, vermelha, ensanguentada,
- Tem notas marciais, soa como um clarim.


CAMILO PESSANHA

Floriam por engano as rosas bravas
No inverno: veio o vento desfolhá-las...
Em que cismas, meu bem? Porque me calas
As vozes com que há pouco me enganavas?

Castelos doidos! Tão cedo caístes!...
Onde vamos, alheio o pensamento,
De mãos dadas? Teus olhos, que um momento
Perscrutaram nos meus, como vão tristes!

Sobre nós cai nupcial a neve,
Surda, em triunfo, pétalas, de leve
Juncando o chão, na acrópole de gelos...

Em redor do teu vulto é como um véu!
Quem as esparze - quanta flor! - do céu,
Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos?


ÂNGELO DE LIMA

Pára-me de repente o pensamento
Como que de repente refreado
Na doida correria em que levado
Ia em busca da paz do esquecimento.

Pára surpreso, escrutador, atento,
Como pára um cavalo alucinado
Ante um abismo súbito rasgado.
Pára e fica, e demora-se um momento.

Pára e fica, na doida correria.
Pára à beira do abismo, se demora.
E mergulha na noite escura e fria.

Um olhar de aço, que essa noite explora.
Mas a espora da dor seu flanco estria,
E ele galga e prossegue sob a espora...


FERNANDO PESSOA

GOMES LEAL


Sagra, sinistro, a alguns o astro baço.
Seus três anéis irreversíveis são
A desgraça, a tristeza, a solidão.
Oito luas fatais fitam no espaço.

Este, poeta, Apolo em seu regaço
A Saturno entregou. A plúmbea mão
Lhe ergueu ao alto o aflito coração,
E, erguido, o apertou, sangrando lasso.

Inúteis oito luas de loucura
Quando a cintura tríplice denota
Solidão e desgraça e amargura!

Mas da noite sem fim um rastro brota,
Vestígios de maligna formosura:
É a lua além de Deus, álgida e ignota.


EDMUNDO DE BETTENCOURT

ABRIGO


Presa da chuva corre a prostituta,
corre presa,
e em frente é a porta aberta do palácio que lhe acena.

Mas à entrada,
o resto duma sereia emerge do escuro,
e um lobo acorda do sono dum tapete,
com uma risonha flor nos dentes,

que a uma claridade subterrânea
o palácio está sem tecto,
suas paredes transparecem,
todo ele é uma poça de água cintilando!

Fora,
uma lira de chuva num deserto
acena à prostituta...


VITORINO NEMÉSIO

O recorte de um cão, na areia, ao luar.
Seu passo imprime
O cuidado miúdo e honesto de passar.

Mas que tristeza oprime
Tanto cão que vi uivar a tanta eira?
Que longo e liso, o fio da noite!
- E amar, esperar desta maneira!

Numa cidade deserta
(Talvez outra, ou Ninive)
Encontrei um anel, uma oferta,
Da vértebra de um cão,
Para uma mulher que já não vive.

Mas tudo isso foi vão,
E até nem sei se esse osso tive.


CARLOS DE OLIVEIRA

SONETO FIEL


Vocábulos de sílica, aspereza,
Chuva nas dunas, tojos, animais
Caçados entre névoas matinais,
A beleza que têm se é beleza.

O trabalho da plaina portuguesa,
As ondas de madeira artesanais
Deixando o seu fulgor nos areais,
A solidão coalhada sobre a mesa.

As sílabas de cedro, de papel,
A espuma vegetal, o selo de água,
Caindo-me nas mãos desde o início.

O abat-jour, o seu luar fiel,
Insinuando sem amor nem mágoa
A noite que cercou o meu ofício.


MANUEL DE CASTRO

A VOZ QUASE SILÊNCIO


vai-se perdendo a voz quase silêncio
um corpo agora oco gasto frio
a morte é uma cor que foi escolhida
para encontrar a direcção do vento

o homem que foi um feto que foi um peixe
que foi o ar que foi o sangue e o gesto
atravessa o mar com círculos nos braços
possuído no seu próprio destino
na descoberta dos focos submarinos

ao nível das estrelas mais brilhantes
e no entanto desde há muito extintas
pode encontrar-se o grande amor final
pesar-se no seu som e qualidade

garganta de alcatrão fundente
vai-se perdendo a voz, quase silêncio


ANTÓNIO GANCHO

ULISSES-OLISIPO


Desenham-se no céu os números da solidão
por onde James Joyce conseguiu escrever o romance
Ulisses há-de sê-lo bem o meu coração
eu, a minha solidão, o meu transe

A chaminé na cidade deita o fumo da minha angústia
o meu desespero projecta a minha intoxicação
Ulisses, cidade de Dublin, eu, Lisboa, minha cidade
eu, Lisboa, a chaminé, o meu coração

O fumo sobe que sobe sobe que sobe e enche o ar
cidade de Dublin, Lisboa
também eu te vou a cantar

Grande a nostalgia do teu néon luminoso
a sentir-se dentro de mim e a dizer-se que já não posso

Aqui a enorme cidade aqui a tentacular
o meu crime é de estudar o céu que me invade
e onde arranha o arranha-céus.

[todos estes poemas estão incluídos em Edoi Lelia Doura, antologia das vozes comunicantes da poesia moderna portuguesa, organizada por Herberto Helder, Assírio & Alvim, 1985]