7.1.06

Urinol de Marcel Duchamp atacado com um martelo

Um cidadão francês de 77 anos passou a noite sob custódia, em Paris, depois de atacar com um martelo um dos famosos urinóis de Marcel Duchamp. A peça, que faz parte da colecção do Centro Pompidou e se encontrava exposta no âmbito de uma exposição sobre o movimento Dada, ficou ligeiramente danificada na sequência da agressão de quarta-feira. Segundo a polícia francesa, o mesmo homem já tinha urinado na mesma peça em 1993, quando esta se encontrava exposta em Nîmes, no Sul de França. O agressor terá declarado que o ataque com o martelo foi uma performance que o próprio Marcel Duchamp teria apreciado.

(no Público de hoje)

5.1.06

[poema com 18 meses]

FERNANDO ASSIS PACHECO

COM A TUA LETRA


Porque eu amo-te, quer dizer, estou atento
às coisas regulares e irregulares do mundo.
Ou também: eu envio o amor
sob a forma de muitos olhos e ouvidos
a explorar, a conhecer o mundo.

Porque eu amo-te, isto é, eu dou cabo
da escuridão do mundo.
Porque tudo se escreve com a tua letra.

(de Cuidar dos Vivos, 1963)

4.1.06

Ainda sobre António Gancho, o relato de um interessante encontro.
ANTÓNIO GANCHO

Artéria, tu tens razão


A única coisa que eu aprendi meu Deus
a sofrer a desilusão duma passagem de rua
ficar com o lado esquerdo a ajudar a falar
mas a única coisa que eu aprendi
Que um bocado de vidro inundasse de luz uma artéria
eu era um bocado de vidro que não inundasse de luz
artéria nenhuma
era uma desilusão a olhar para mim
e dizer movimento de rua
é assim movimento de rua
aí está nós cá estamos nós somos tal e qual
uma desilusão em passagem.
Tinha era ainda mais que tudo isso
um inchaço dum vidro em bocado
espetado em cima de pedra.
Havia um estendal de desilusão a devorar-me
todo com os olhos
eu era uma continuação do meu ser.
Onde um simulacro estava a vantagem
de uma desilusão.
Eu não
eu cá.
Que um cá estamos considerasse ou não
eu não tinha nada com isso
Eu fum, eu...
Ah,
Havia é que era eu cá estamos nada disso
eu cá não eu nada eu não tinha eu não tenho
tu quê
nós consideramos.
Onde punha fum
tudo por dentro era duma urania
tudo por dentro era duma constipação palpável
pelo sentido da pedra e do bocado de vidro.
Não eu cá não vou.
Quem olha descontenta.

(de O Ar da Manhã, Assírio & Alvim, 1995)
António Gancho morreu durante o sono, de ataque cardíaco, na noite de passagem de ano, na Casa de Saúde do Telhal, próximo de Sintra, onde estava internado desde 1967. Morreu "com ar trocista, a rir-se", descreveu ao PÚBLICO António Lampreia, da Assírio & Alvim, editora que publicou os dois únicos livros do poeta, O Ar da Manhã (1995) e a novela erótica As Dioptrias de Elisa (1996). O funeral realizou-se ontem no cemitério de Benfica, em Lisboa.

(da edição de hoje do Público)

[o texto é um excerto da notícia da responsabilidade de Kathleen Gomes e a foto é de Miguel Carvalhais]

3.1.06

[a propósito de uma sequência de Kundera, pelo Tim, em Novembro: um, dois, três, quatro, cinco; e de um post, mais recente, de Luís Rainha, no Aspirina B]

HANS MAGNUS ENZENSBERGER

a merda


como se ela tivesse culpa de tudo.
vejam só como suave e modesta
ela que se senta debaixo de nós!
porquê conspurcarmos então
o seu bom nome
e o emprestamos
ao presidente dos usa,
aos chuis, à guerra
e ao capitalismo?

que efémera ela é,
e aquilo a que damos o seu nome
que duradouro!
ela, a flexível,
anda na nossa boca
e referimo-nos aos exploradores.
ela, que nós esprememos,
terá agora que exprimir ainda
a nossa raiva?

não nos aliviou?
de mole consistência
e singularmente mansa
é de todas as obras do homem
provavelmente a mais pacífica.

que mal é que ela nos fez?

(de Poemas Políticos, tradução de Almeida Faria, publicações Dom Quixote, 1975 - original de gedichte 1955-1970, de 1971)

2.1.06

WALLACE STEVENS

Nasceu em 1879, em Reading, estado da Pensilvânia (EUA).
Publica os primeiros poemas em 1897, quando frequentava a Universidade de Harvard, onde concluiu os cursos de Inglês e de Direito.
Publicou oito livros de poesia e um de ensaios, tendo recebido diversos prémios.
Morreu em 1955.


O DOMÍNIO DO NEGRO

À noite, ao lume,
As cores das sebes
E as folhas caídas
Repetindo-se
Volteavam na sala
Tal como essas folhas
Volteando no vento.
Sim: mas a cor dos graves teixos
Avançava a passos largos
E eu lembrei-me do grito dos pavões.

As cores dos seus leques
Eram como essas folhas
Volteando no vento,
No vento do poente.
Giravam pela sala
Como ao soltar-se dos ramos dos teixos
A caminho do chão.
Ouvia-os gritar: os pavões.
Um grito contra o poente?
Ou contra essas folhas
Volteando no vento,
Volteando como as chamas
Volteavam no lume,
Volteando como os leques dos pavões
Volteavam no lume que se ouvia,
Que se ouvia como os teixos
Cheios dos gritos dos pavões?
Ou um grito contra os teixos?

Pela janela
Vi como os planetas se reuniam
Tal como essas folhas
Volteavam no vento
Vi como a noite chegava,
Avançando a passos largos como a cor dos graves teixos
E tive medo.
E lembrei-me do grito dos pavões.

(tradução de Alberto Pimenta e Maria Irene Ramalho de Sousa Santos, in As Escadas não têm Degraus 3 - Março de 1990)


TEORIA

Sou o que me rodeia.

As mulheres compreendem isto.
Não se é duquesa
A cem metros de uma carruagem.
Estes, então, são retratos:
Uma antecâmara preta;
Uma cama alta protegida por cortinas.

Isto são meros exemplos.


O SENTIDO SIMPLES DAS COISAS

Depois das folhas terem caído, regressamos
A um sentido simples das coisas. É como se
Tivéssemos chegado ao fim da imaginação,
Inanimados num inerte savoir.

É difícil até escolher o adjectivo
Para este frio vazio, esta tristeza sem causa.
A grandiosa estrutura tornou-se numa casa menor.
Nenhum turbante caminha através dos soalhos degradados.

A estufa nunca precisou tanto de tinta.
A chaminé tem cinquenta anos e está inclinada para um lado.
Falhou um esforço fantástico, uma repetição
Numa repetitividade de homens e moscas.

Contudo a ausência da imaginação tinha
Ela própria de ser imaginada. O lago grandioso,
O seu sentido simples, sem reflexos, folhas,
Lama, água como vidro sujo, expressando silêncio

De certo tipo, silêncio de um rato saindo para ver,
O lago grandioso e a sua imensidade de nenúfares, tudo isto
Tinha de ser imaginado como um conhecimento inevitável,
Exigido, como uma necessidade exige.

(de Ficção Suprema, tradução e prefácio de Luísa Maria Lucas Queiroz de Campos, Assírio & Alvim, 1991 - Gato Maltês)


NÃO IDEIAS SOBRE A COISA, MAS A PRÓPRIA COISA

Logo ao findar o Inverno,
Em Março, um grito magro do exterior
Pareceu-lhe ser um som dentro da mente.

Ela sabia tê-lo ouvido,
Um grito de ave à luz do dia, ou antes,
Nos primeiros ventos de Março.

O sol nascia às seis,
Não já topete em ruínas sobre a neve...
Teria sido no exterior.

Não partiu do vasto ventriloquismo
Do desbotado papel pardo do sono...
O sol vinha do exterior.

Esse grito magro - era
Um corista cujo c precedia o coro.
Era parte do sol colossal,

Que os seus anéis corais cercavam,
Ainda longe. Era como
Um novo conhecimento da realidade.


DO MERO SER

A palmeira, onde a mente acaba,
Para lá do último pensamento, ergue-se
Na distância do bronze,

Um pássaro de penas douradas
Canta na palmeira, sem sentido humano,
Sem sentir humano, uma canção estrangeira.

Então tu sabes que não é a razão
Que nos faz felizes ou infelizes.
O pássaro canta. As penas brilham.

A palmeira ergue-se à beira do espaço.
O vento move-se nos ramos lentamente.
Pendidas, oscilam as penas do pássaro ornadas de fogo.

(in Leituras - poemas do inglês, prefácio e tradução de João Ferreira Duarte, Relógio d'Água, 1993)


A CASA ESTAVA SILENCIOSA E O MUNDO ESTAVA CALMO

A casa estava silenciosa e o mundo estava calmo,
O leitor tornava-se no livro; e a noite de verão

Era como a essência consciente do livro.
A casa estava silenciosa e o mundo estava calmo.

As palavras eram pronunciadas como se não houvesse livro,
A não ser o leitor inclinado sobre a página.

A desejar inclinar-se, a desejar extremamente ser
O letrado para quem o seu livro é verdadeiro, para quem

A noite de verão é como uma perfeição de pensamento.
A casa estava silenciosa porque assim tinha de estar.

O silêncio fazia parte do sentido, parte do espírito:
Era a perfeição no seu acesso à página.

E o mundo estava calmo. A verdade num mundo calmo,
No qual não há outro sentido, a própria verdade

Está calma, ela própria é verão e noite, ela própria
É o leitor em tardia vigília, inclinado, lendo.

(tradução de David Mourão-Ferreira, in Vozes da Poesia Europeia - III / Colóquio Letras número 165 - Setembro-Dezembro 2003)


TREZE MANEIRAS DE CONTEMPLAR UM MELRO

I
Entre as vinte montanhas nevadas
A única coisa movendo-se
Era o olho do melro.

II
Eu tinha três almas
Como a árvore
Em que há três melros.

III
Os melros rodopiaram nos ventos outonais.
O que era uma pequena parte da pantomima.

IV
Um homem e uma mulher
São um.
Um homem e uma mulher e um melro,
São um.

V
Não sei que preferir -
A beleza das inflexões
Ou a beleza das insinuações,
O melro que gorjeia,
Ou o depois.

VI
Pingos de gelo enchiam a vasta janela
De vidro bárbaro.
A sombra do melro
Cruzava-a, de cá para lá, de lá para cá,
A situação
Traçava uma sombra
Um curso indecifrável.

VII
Ó homens magros de Haddam,
Porque imaginais pássaros de ouro?
Não vêdes como o melro
Passeia à volta dos pés
Das mulheres à vossa volta?

VIII
Sei de nobres tons
E de lúcidos inescapáveis ritmos;
Mas também sei
Que o melro está envolvido
No que eu sei.

IX
Quando o melro desapareceu da vista,
Marcou o limite
De um de vários círculos.

X
À vista de melros
Voando na luz verde
Até os alcoviteiros da eufonia
Gritariam desafinados.

XI
O homem atravessou o Connecticut
Num coche de vidro.
Uma vez, um terror o trespassou,
E foi quando tomou
A sombra dos cavalos
Por melros.

XII
O rio move-se.
O melro deve estar a voar.

XIII
Foi entardecer toda a tarde.
Nevava
E estava a ponto de nevar.
O melro pousado
Nos ramos do cedro.

(Tradução de Jorge de Sena, in Poesia do Século XX, de Thomas Hardy a C.V.Cattaneo, 1978)


TREZE MANEIRAS DE OLHAR PARA UM MELRO

I
Entre vinte montanhas cheias de neve
a única coisa que se mexia
era o olho do melro.

II
Eu era de três mentes
como uma árvore
onde há três melros

III
O melro rodopiava no vento de Outono.
Era uma pequena parte da pantomima

IV
Um homem e uma mulher
são um só.
Um homem, uma mulher e um melro
são um só.

V
Não sei de que gosto mais,
se da beleza das inflexões
ou da beleza das sugestões,
quando o melro assobia
ou imediatamente a seguir

VI
Sincelos enchiam a enorme janela
de vidro bárbaro.
A sombra do melro
atravessava-a, de um lado ao outro.
O estado de espírito
traçava na sombra
uma causa indecifrável.

VII
Ó homens franzinos de Haddam
para quê imaginar pássaros doirados.
Não vêem como o melro
passeia em redor dos pés
das mulheres à vossa volta?

VIII
Sei de nobres acentuações
e de ritmos lúcidos inescapáveis;
mas também sei
que o melro está contido
naquilo que eu sei.

IX
Quando o melro voou para fora da vista,
marcou o cimo
de um de muitos círculos.

X
À vista dos melros
voando numa luz verde
até os malabaristas da eufonia
seriam capazes de feitos.

XI
Foi pela estrada até ao Connecticut
num carro de vidro.
Uma vez, ficou varado de medo
Quando confundiu
a sombra dos seus apetrechos
com melros.

XII
O rio já corre.
O melro deve ter começado a voar.

XIII
Ficou noite toda a tarde.
Nevava
e continuaria a nevar.
O melro ficou
nas pernadas do cedro.

(tradução de Helder Moura Pereira, in O Fazer da Poesia de Ted Hugues, Assírio & Alvim, 2002 - documenta poetica)
Há duas semanas, Eduardo Pitta anunciou a publicação, por cá, de dois novos livros de Wallace Stevens: «ambos sob chancela da Relógio d'Água: uma Antologia, organizada por Maria Andresen de Sousa, a partir de seis livros do autor (e mais dois poemas isolados); e O Homem da Viola Azul, da responsabilidade de Maria Adelaide Ramos. Trata-se, naturalmente, de edições bilingues.» (o texto segue com uma curta, mas elucidativa, apresentação.)

Stevens foi para mim uma descoberta fantástica, aos 19 ou 20 anos, quando li os catorze poema que constituem a recolha Ficção Suprema (por sinal, foi também a primeira vez que estive em contacto com a belíssima colecção Gato Maltês).
Fui descobrindo depois algumas (todas?) das raras traduções desse grande poeta americano e com a internet fiquei a conhecer melhor a sua obra, arriscando mesmo a traduzir os seus Treze Modos de Olhar um Negro Melro.
Este Natal trouxe-me mais uma tradução sua, curiosamente integrada numa colectânea chamada Vozes da Poesia Europeia.

1.1.06

Nenhuma palavra nos salva é o novo blog da Rute.

Ela e eu criámos A Grolha, digo, Gralha.
Disparates do Mundo é o nome de um livro de G. K. Chesterton (entre nós traduzido pelo sábio e meteorologista José Blanc de Portugal) e, desde há umas semanas, de um blog.
Poesia & Lda. é um novo blog, de autoria do poeta João Luís Barreto Guimarães.

A propósito, recupero aqui um excerto duma carta de Fernando Pessoa que postei no dia do aniversário da sua morte:
Quando vi que o Orpheu era dado como propriedade de «Orpheu Ltda.» observei ao Sá-Carneiro que era preferivel dizer «Empreza do Orpheu» ou coisa parecida, e não empregar uma designação de sociedade por quotas. «E se alguem se lembrar de pedir a certidão de registo no Tribunal do Commercio?» «Você crê?» disse o Sá-Carneiro. «Deixe ir assim. Gosto tanto, tanto da palavra limitada».
J. Camilo é como se identifica o autor de Blue Everest, um blog com mais de um ano, mas que só há umas três semanas encontrei.

De poesia, predominantemente em inglês, mas também em português e imagens.