13.9.03

Se um dia tivesse o mundo nos olhos
(noites cumpridas de visão e luz)
seria um pássaro envolto de céu
perto de asas em ruínas livres
de, outrora grandes, poderosas, casas.
Afasto-me das trevas trazendo
imagens que sempre existem.
Estradas de curvas inesperadas;
paisagens com árvores e bruma;
grandes pedras umas sobre as outras;
marcos geodésicos e chuvas fortes.
Noites claras de ver longe.

11.9.03

ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO

Quatro epitáfios


a um homem

Olhei a estátua de Benvenutto Cellini sobre a ponte vecchia de
Fiorença e os grafitti que alguém desenhou.
Também o World Trade Center viu o meu carregado ar de idade.
Mas nada disso bastou. Viveu-se a vida e só aqui definitiva e
indiferente ela me abandonou.

a outro homem

A nada olhei, Eu, tudo ganhei. A terra ainda cheira à minha
estupenda e espumosa urina. Nunca na vida em nada pensei.
Eu, combati e dominei. Eu trabalhei. Porém frente à morte
eu tímido, doente e já sem líquidos, eu deveras me assustei.

a uma mulher

Vivi, bati, morri, lavei, pari, e bastei. Fui como as abelhas
e não só o mel deixei. Sim, porque também de mim ficaram as
saudades a quem tudo isto dei.

a um escritor

Já não escrevo. A estes prados distantes me retirei. E muito
aqui me espantei. Porque aí, história, rasto ou memória de mim
não encontrei. Apenas este silêncio, este jazer, absurdo e enterrado,
sem de nada aqui saber.

(in A Ideia - revista de cultura e pensamento anarquista, nº 32-33, Abril de 1984)
JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE

IN MEMORIAM ALLENDE


Se eu fosse marxista - porque me abandonaste? Se
neste meio ano vivemos tanto e construímos a nossa casa
num bordel.

Basta-me empurrar uma porta: ajuda-te que
o céu te ajudará - só repito as palavras da Bíblia.
E depois?
De que é que vive o homem? De comer.
E depois?
Talvez um pouco da moralidade ou dos inventos de
Francesco di Giorgio Martini perdão
quero dizer Salvador Allende Gossena. Uma insinuação.
Em setembro de 1970. Esta praia. Esta mesa. O
jornal aberto sob o teu nome escolhido pelo povo de
Santiago pelo povo de Valparaíso e
por aquele que vive ao longo dos Andes falando aracuano.
Lembro
o teu gesto de paz a tua entrada na catedral para seres empossado
lembro e lembro-me que sorri.
Em setembro de 1973. Esta praia. Esta mesa. O
jornal ainda. O teu nome dito.

Olha meu amigo
o que se promete raramente se cumpre eu
eu sou tão infiel a tudo
mesmo às árvores que com certeza plantaste e
onde as rolas hoje fazem ninho (por certo há rolas no teu país).

Olha meu amigo
trago-te esta comida. Tem cinco mil anos ou só a
velocidade dos meus dedos
- uma romã nozes frutos secos e
sob o pequeno armário da manhã
passas de uva.

Olha
vamos morrer? mas morrer não é tudo: seria preciso morrer
muito tarde e
não esqueças: Washington sabe Washington sabe quem sacode os ramos dos
castanheiros.

(de Turvos Dizeres, 1973 - incluído em Obra Poética, volume 2, editorial Presença, 2ª ed: 1987)

10.9.03

juro que não foi para irritar Pedro Mexia; já tinha pensado há algum tempo no poema que se segue, de autor monárquico, para marcar o 11 de Setembro - segue-se-lhe uma discreta evocação do WTC

[não vou passar o poema de Ruy Belo com o mesmo título do de JMFJ, por causa da sua extensão, mas fica a referência: é o último poema da primeira parte de Toda a Terra, editado em 1976]
DEJA VU

Em Barcelona também há bloggers a almoçar uns com os outros e a frequentar a FNAC.

9.9.03

MARIA ÂNGELA ALVIM

Nasceu no primeiro dia de 1926, em Minas Gerais, Brasil.
A mais velha de cinco irmãos, todos poetas.
Pôs fim aos seus dias aos 33 anos.


Meus olhos são telas d'água,
não ferem a perfeição.

*


O túmulo. O vôo do corvo,
sombra das mãos da amante traçando o adeus.
Passaram as mãos da amante sobre o corpo sem memória
e se perderam no infinito das paralelas.

*


A noite maior desceu à minha esquerda,
a grande noite das estrelas cegas.
À minha direita
o braço mecânico,
o olho de vidro,
o riso de louça,
o dia-invenção,
- o despudor das coisas divisíveis.

(de Superfície, 1950)


Já viajas na morte, - nadam
aí tuas flores, passageira.
- E só perfumes te engrinaldam
a cabeceira.
Noutra margem onde se foram
as cores que emigram na enseada
sonhos de vida acalentada
hoje redouram.

Para Celma

(de Barca do Tempo, 1950-1955)


I

...Se vamos levando enganos?
Chegamos. Rostos se apagam,
vão somando semelhanças
com outros rostos já vistos
(Ai de nós, se subtraem
sempre mais tristes, sofridos).
- Ninguém se conhece. E nós
sabemos de cada um:
nascido é um novo sentido,
por isso nos entregara. Que compreendemos
demais.
E nós mesmos, coagidos
a largar-nos sem aviso
de razão: comprazimento.

Tão fora de nós, tão dentro,
andamos quebrando a sede
nos corredores sem água.
Apenas em nós se guarda
a certeza, esta certeza
de tantas portas fechando
em outras portas se abrindo.
Aqui encerra o domínio
nosso mundo repartido. As sombras,
jardim de loucos, protegem esta subida:
são plantas? Respira a noite.
É o vento? Seriam as vestes
bem alvas, mais que tecidas
da enfermeira sem rosto
e braço - no escuro nos conduzindo?

Ah! Existem outras escadas
que subimos mais por dentro.
No balaústre uma estátua
se apóia em nosso receio.
Paramos. Eis uma porta
imensa. Crescemos tanto!

E, passando,
pequeninos. Novos degraus
mas pequenos, sempre mais
nos reduzimos.

A enfermeira, distante,
era negra e para sempre
atrás das portas, da noite,
do jardim, branco vestido.

(de Poemas de Agosto)

[poemas retirados de Superfície - Toda Poesia, Assírio & Alvim, 2002 - documenta poetica]
O Valete Frates! diz hoje o que eu devia ter dito ontem: Almocei com a Voz do Deserto!

A mim valeu-me ser citado, pelo Tiago, com um poema sobre Rimbaud.

Mas o que gostei mais na Voz de ontem (e há lá sempre tanto para gostar!), foi de uma ligação a uma página sobre o fantástico (nos vários sentidos da palavra) C. S. Lewis.
Num tempo tão carecido de genuína ironia, faz falta.

7.9.03

Andy Wahrol disse que um dia
todos teríamos quinze minutos
de fama.

Eu porém digo-vos:
Há de chegar o dia, e é já agora,
em que mesmo os mais famosos terão
cinco minutos de privacidade.
[gosto muito de inventários XVII]

ALEXANDRE O'NEILL

INVENTÁRIO


Um ruído de torneiras que pinga
Um gato passeado pelo desejo
Uma esposa coberta de caliça
Um despejo

Um congresso que dorme inaugurado
Uma condessa de sovaco triste
Um excremento muito mal logrado
Um mimo a que ninguém assiste

Um repelente menino Vicente
Posto na vida só p'ra ter juízo
Um incisivo e solitário dente
Carregado de riso

A miúda que vem maneirinha
Ao encontro na Praça do Chil'
E a voar como uma andorinha
Do meu coração o til

Uma d'óculos a olhar de lado e é p'ró pecado
Uma torpe saborosa canção
Um rápido encontro falhado
Um dia de bruços no chão

Um tinto vomitado na areia
Uma nuca rachada pelo sol
Um osso a esperar a maré-cheia
Uma petiza pendurada e mole

Um tartamudo na pior altura
Um soluço através duma ruína
Uma forte implacável dentadura
À dentada subindo pela ravina.


(de No Reino da Dinamarca, 1958)
[gosto muito de inventários XVI]

DANIEL FARIA

Um coração de sangue
Um coração de xisto e aço
Um coração angular e redondo
Como a pedra que te abre
Do interior do chão

Um coração solar
De granito
De carne
Curado da noite de nascença

Um coração de homem
Um coração de homem vivo
Um coração de criança ao colo
Interior
- Mais interior do que o sangue no coração que me darás -

Peço um coração
Nuclear

(de Explicação das árvores e de outros Animais, Fundação Manuel Leão, 1998)
[gosto muito de inventários XV]

PEDRO MEXIA

Memória Descritiva


A sombra dos tectos altos
não deixa respirar. A pintura
esboroada como os ossos.
A moldura verde das portas
na solidão de ferro abandonada.
As cortinas de fumo sujo.
Serradura nas frestas da madeira.
Gonzos, chaves, uma gaveta
com bocados de uma cama.
Luzes ímpares em jornais antigos.
Ganchos, fios, fendas.
Uma almofada, restos
dum romance francês, o metal
de um candeeiro. Recantos,
esquinas, manchas irregulares,
pratos, móveis trôpegos, uma parede
onde estala a cal. Tábuas pequenas,
traves, bolor num espelho, vidrinhos,
relógios, autocolantes, fechaduras,
uma arca da qual ninguém
se aproxima, pedaços de tecido
alegre e tantas cadeiras.

(de Em Memória, Gótica, 2000)
[gosto muito de inventários XIV]

JOSÉ MIGUEL SILVA

Reservas


A bicicleta azul roda 16
o relógio digital do melhor aniversário
os baralhos os pêssegos de julho
prolongando o S. João
o relato dos Domingos
o cachecol de campeão
a noite como um túnel de minutos
o primeiro candeeiro o velame
do livro inicial
o comboio para Irivo
o beliche em que dormiam
desejos e temores
as armas dos irmãos e o baloiço
ao fundo do quintal
os olhos de Celina
o filme que começa
o filão de amoras bravas
atrás de muros altos
a Zundapp do vizinho a morte conhecida
as sevícias do recreio
entre duas alianças
a corrida à mercearia
as areias de Francelos Valadares
as cartas para o pai
os gatos o fulgor dos pirilampos
o "ama-me" das fotos
no pátio das cerejas
os joelhos golpeados de verdete
os risos de papel
as moedas encontradas uma vez
e que logo foram cromos
que logo foram pó.

(de O Sino de Areia, Gilgamesh, 1999)
[gosto muito de inventários XIII]

VINDEIRINHO

f_

os fragmentos da inquietação, facas, copos de corpos de
iogurt vazios que se estão a deitar no caixote do

lixo
de vinho, de vidro, também

vazias, novos materiais, uma praia de mensagens nas
garrafas, sacos
do lixo, vem a

mulher a dias de negro, beatas de cigarros pautadas pelo ritmo
das
mesas e dos cinzeiros.

o frio da ausência de person
agens em espaços cansados cheios de sono. o sofá e a sala des
arrumada. quem

o fumo da substância alquímica, o oiro velhíssimo. a carne
deixada há uma semana
no tacho. frases inacabadas há qto tempo não nos víamos.
cocktail
molotof de convidados. vermelho, azul, amarelo, branco este o de
um silêncio frio e sanguinário de uma pedra de mármore
talhada

depois da morte da festa. uma borboleta que vinda da
janela entra pela casa a dentro

a manhã que tem dificuldade em se levantar na orquídea
do
vaso,
uma luz que entra pelas persianas desta igreja no centro da c
idade antiga
embriagada de talha doirada e de barcos afund

ando

fragmentos de deus e alimentos genéticos nos centros comerci
ais, fra
gmentos de deus na sala de
pois da

morte da festa na arquitectura do
espaço

(de DOMÉSTICOS, Black Sun editores, 2001 - the impossible papers)
[gosto muito de inventários XII]

ALEXANDRE O'NEILL

LISTA DE OBJECTOS ENCONTRADOS UM ACAMPAMENTO DE ESCRAVOS FUGITIVOS MAIS O POEMA ENCONTRADO NESTA LISTA


três machetes
três facas duas com ponta e outra sem ponta
três punhais de tamanho maior com as suas baínhas
um punhal sem cabo e sua baínha
três punhais sem cabo e sem baínhas
um machado para lenha com cabo
meia arroba de cera cozida pouco mais ou menos
meia arroba de cera cozida pouco mais ou menos
igual quantidade de cera em rama
um baralho de cartas
algumas peças de roupa
um capote com mais de meio uso
uma rede de dormir com mais de meio uso
um pouco de carne
uma frigideira e um pouco de comida
um garrote grande e uma pedra redonda
uma vasilha grande de guira para transportar água
uma cabaça pequena com mel e uma garrafa vazia
um pouco de pólvora
seis chuços que mandei destruir

(de Dezanove Poemas, 1983, in Poesias Completas 1951/1986, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990)
[gosto muito de inventários XI]

JOSÉ MÁRIO SILVA

AINDA UM OUTRO POEMA DOS DONS

Tal como tu, Jorge Luis Borges,
graças quero dar ao insondável
labirinto dos efeitos e das causas,
pelo cosmos infinito, espaço
vazio onde brilham galáxias,
pela luz, que é ao mesmo tempo
onda, partícula e sete cores
através de um prisma,
pela vida, esse acaso fabuloso,
pela evolução das espécies, trama
subtil que une bactérias, leopardos,
acácias, fungos e homens,
pelas noites antigas em que as estrelas
pareciam grandes fogueiras acesas no céu,
por Atenas, em cujas ruas nasceu a
democracia e o pensamento,
por Eratóstenes, que calculou a dimensão
da Terra, medindo sombras,
pela inteligência, a mais eficaz de todas
as armas e também a mais traiçoeira,
por Heraclito, frente ao rio eterno
que nunca se repete,
pelo negro basalto e a brancura da neve,
pela beleza de um corpo nu,
pelo trigo, o alabastro e a cidra,
pelos gestos heróicos que mudam o
frágil rumo da História,
por Galileu,
de luneta apontada aos astros,
lendo a matemática com que se
escreve o livro do universo,
pela utopia, esse lugar impossível
mas absolutamente necessário,
por certa noite de 1993,
pela melancolia, doce forma de tristeza,
por tudo o que foi dito mas ficou por escrever,
pela torre de Babel, esse prodígio que Deus não permitiu,
pela música de Bach,
precisa, perene, perfeita como um cristal,
pelas madrugadas em Paris, à beira do Sena,
pelo amor, luminosa e indizível
união entre dois seres,
pelos albatrozes que pairam sobre falésias,
pelo Maditerrâneo, o vinho e o mel,
pela alegria de estar entre amigos
ouvindo Schubert e lendo poesia,
pelo cinema, lugar escuro onde o
mundo pode ser reinventado,
pelos poentes de Turner e os gelos de Friedrich,
por James Joyce, hábil construtor de
uma Dublin feita de palavras,
por Signac e a sua Auxerre pontilhista,
pelo génio de Alekhine,
sacrificando dama e torre num jogo às cegas,
pelo sonho de Marx, que acreditou num
homem novo e melhor,
pelo sabor dos alperces no verão,
por Hector Hug Munro, que escrevia com
elegância e era subtil como um gato persa,
pelos 4 minutos e 33 segundos
de John Cage,
pela liberdade, último reduto do indivíduo,
pelo Grand Canyon, que nos reduz
a quase nada,
pelas iluminuras medievais,
com anjos dentro das letras góticas,
pela paciência que esmorece com o
passar dos anos,
pelos jornais, o cheiro da tinta e
o estrépito das rotativas,
pela geometria de Riemann,
com que Einstein imaginou o espaço-tempo,
pela inocência das crianças e a imagem
serena de um bebé dormindo,
pela noite em que vi uma lua vermelha
sobre o Báltico,
pela escrita, caminho árduo mas exaltante,
pelo poema de que este é espelho,
por todos os dons que também calaste,
por ti, Borges, poeta cego como Milton e Homero,
minotauro perdido num labirinto de versos.

(de Nuvens & Labirintos, Gótica, 2001)