9.9.03

MARIA ÂNGELA ALVIM

Nasceu no primeiro dia de 1926, em Minas Gerais, Brasil.
A mais velha de cinco irmãos, todos poetas.
Pôs fim aos seus dias aos 33 anos.


Meus olhos são telas d'água,
não ferem a perfeição.

*


O túmulo. O vôo do corvo,
sombra das mãos da amante traçando o adeus.
Passaram as mãos da amante sobre o corpo sem memória
e se perderam no infinito das paralelas.

*


A noite maior desceu à minha esquerda,
a grande noite das estrelas cegas.
À minha direita
o braço mecânico,
o olho de vidro,
o riso de louça,
o dia-invenção,
- o despudor das coisas divisíveis.

(de Superfície, 1950)


Já viajas na morte, - nadam
aí tuas flores, passageira.
- E só perfumes te engrinaldam
a cabeceira.
Noutra margem onde se foram
as cores que emigram na enseada
sonhos de vida acalentada
hoje redouram.

Para Celma

(de Barca do Tempo, 1950-1955)


I

...Se vamos levando enganos?
Chegamos. Rostos se apagam,
vão somando semelhanças
com outros rostos já vistos
(Ai de nós, se subtraem
sempre mais tristes, sofridos).
- Ninguém se conhece. E nós
sabemos de cada um:
nascido é um novo sentido,
por isso nos entregara. Que compreendemos
demais.
E nós mesmos, coagidos
a largar-nos sem aviso
de razão: comprazimento.

Tão fora de nós, tão dentro,
andamos quebrando a sede
nos corredores sem água.
Apenas em nós se guarda
a certeza, esta certeza
de tantas portas fechando
em outras portas se abrindo.
Aqui encerra o domínio
nosso mundo repartido. As sombras,
jardim de loucos, protegem esta subida:
são plantas? Respira a noite.
É o vento? Seriam as vestes
bem alvas, mais que tecidas
da enfermeira sem rosto
e braço - no escuro nos conduzindo?

Ah! Existem outras escadas
que subimos mais por dentro.
No balaústre uma estátua
se apóia em nosso receio.
Paramos. Eis uma porta
imensa. Crescemos tanto!

E, passando,
pequeninos. Novos degraus
mas pequenos, sempre mais
nos reduzimos.

A enfermeira, distante,
era negra e para sempre
atrás das portas, da noite,
do jardim, branco vestido.

(de Poemas de Agosto)

[poemas retirados de Superfície - Toda Poesia, Assírio & Alvim, 2002 - documenta poetica]

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