27.9.03

[o meu contributo para os early morning blues do Abrupto]

LED ZEPPELIN

What Is And What Should Never Be
(Page/Plant)


And if I say to you tomorrow. Take my hand, child, come with me.
It's to a castle I will take you, where what's to be, they say will be.

Catch the wind, see us spin, sail away, leave today, way up high in the sky.
But the wind won't blow, you really shouldn't go, it only goes to show
That you will be mine, by takin' our time.

And if you say to me tomorrow, oh what fun it all would be.
Then what's to stop us, pretty baby. But What Is And What Should Never Be.

Catch the wind, see us spin, sail away, leave today, way up high in the sky.
But the wind won't blow, you really shouldn't go, it only goes to show
That you will be mine, by takin' our time.

So if you wake up with the sunrise, and all your dreams are still as new,
And happiness is what you need so bad, girl, the answer lies with you.

Catch the wind, see us spin, sail away, leave today, way up high in the sky.
But the wind won't blow, you really shouldn't go, it only goes to show
That you will be mine, by takin' our time.

Oh the wind wont blow and we really shouldn't go and it only goes to show.
Catch the wind, we're gonna see it spin, we're gonna...sail, little girl
do do do, bop bop a do-oh, my my my my my my yeah.
Everybody I know seems to know me well
but they're never gonna know that I move like hell.

(do album Led Zeppelin II, 1969)
LEONARD COHEN

Nasceu em Montreal, Canadá, em 1934.
Poeta, cantor, romancista, compositor, actor eventual.


PERGUNTO-ME QUANTA GENTE NESTA CIDADE

Pergunto-me quanta gente nesta cidade
vive em apartamentos mobilados.
Altas horas da noite quando olho os outros prédios
juro que vejo um rosto em cada janela
que me olha também
e quando volto para dentro
pergunto-me quantos se sentam às suas escrivaninhas
a escreverem isto mesmo.

(de Filhos da Neve - Antologia Poética, versões de Jorge Sousa Braga e Carlos Tê, Assírio e Alvim, 2ª ed: 1997 - colecção Rei Lagarto)


The Genius

For you
I will be a ghetto jew
and dance
and put white stockings
on my twisted limbs
and poison wells
across the town

For you
I will be an apostate jew
and tell the Spanish priest
of the blood vow
in the Talmud
and where the bones
of the child are hid

For you
I will be an banker jew
and bring to ruin
a proud old hunting king
and end his line

For you
I will be a Broadway jew
and cry in theatres
for my mother
and sell bargain goods
beneath the counter

For you
I will be a doctor jew
and search
in all the garbage cans
for foreskins
to sew back again

For you
I will be a Dachau jew
and lie down in lime
with twisted limbs
and bloated pain
no mind can understand

(in 15 Canadian Poets X 2, edited by Gary Geddes, Oxford University Press Canada, 1988)

O Génio

Para ti
eu serei o judeu do gueto
e dançarei
e hei de pôr meias brancas
nos meus membros trémulos
e poços envenenados
por toda a cidade

Para ti
eu serei o judeu apóstata
e contarei ao padre espanhol
o pacto de sangue
que vem no Talmude
e o local onde estão os ossos
escondidos da criança

Para ti
eu serei o judeu banqueiro
e trarei à ruína
um ilustre rei desejado
e darei cabo da sua descendência

Para ti
eu serei o judeu da Broadway
e chorarei nos teatros
pela minha mãe
e irei vender bugigangas
abaixo do preço

Para ti
eu serei o judeu médico
e irei à procura,
por todos os caixotes do lixo,
de prepúcios
para os coser outra vez

Para ti
eu serei o judeu de Dachau
e cairei no lodo
com os membros trémulos
e uma dor inchada
que nenhuma razão compreende

(tradução minha)

26.9.03

VICTOR HUGO OLIVEIRA

Pequena intromissão


1.
Ainda nos persegue a pequena intromissão
de folhas secas
elevam-se altas, circulares
até às esquinas onde perco a fé
a tarde
à hora das bibliotecas vazias

Ainda nos persegue o quotidiano das máquinas
e dias
no despojar da pele magra
as areias que ensinaste a contar
aos irmãos ignorantes
contra as dez faces do fogo

Olharei o Inverno e outra vez
procurarei a imperturbável nostalgia
das perdidas gerações
que reclamaram a sua vida


2.
A transição de alguns
atravessa estas paredes
um anjo sentado sobre os degraus do mundo
há um pé que paira nas primeiras águas
e turva o seu próprio reflexo

A casa deserta respira
o peso do meu peito
as mãos a mesa da noite

A dor volta
como carrocel quebrado
o pudor se há algum pudor
na luz da infância

(in aqueles que têm os ossos frágeis, nº 2 - primavera / verão 1999)
OSSOS FRÁGEIS

Há cerca de um mês, entre Tiziano e Goya, encontrei o padre Tolentino, que me pagou um café ("paga-me um café e conto-te a minha vida") e me apresentou o padre Mário Rui Oliveira.
Fico agora feliz por os rever numa equipa que, além de outros inclui também o meu caro amigo Paulo do Vale.

A frase soa estranha, mas é sincera: bem vindos, Intrusos!

25.9.03

[outros melros IV]

MIGUEL TORGA

Lição


Oiço todos os dias,
De manhãzinha,
Um bonito poema
Cantado por um melro
Madrugador.
Um poema de amor
Singelo e desprendido,
Que me deixa no ouvido
Envergonhado
A lição virginal
Do natural,
Que é sempre o mesmo, e sempre variado

(de Diário X, edição do Autor, 1968 / 2ª ed. revista: 1992)

24.9.03

[outros melros III]

FERNANDO ASSIS PACHECO

LUMIAR, LISBOA: UM MELRO NA RAMPA DA TELEVISÃO


Um melro na rampa da Televisão
um melro cantava e eu que chegava
parei-me a ouvi-lo com aqueles garganteios à Elisabeth Schwarzkopf
invejoso daqueles agudos sustentados entre folhas e com o sol do Verão a dar na tromba
como uma pedra
eu ou seja este bípede vestindo camisa Lacoste de crocodilo ao peito
envolto em águas tristes herdadas dos quatro primeiros impérios
que prefiro as salas de trás nas casas de trás das cidades que estão para lá dos rios e das matas de medronheiros
onde ainda tento acender um ou outro amigo com os fusíveis trazidos queimados de África incapaz
por todas as razões expostas de colar suficientemente à melopeia do verso heróico

um melro cantava e eu que parava
pego na esferográfica rasgo metade de um sobrescrito
cedo à «inspiração» para anotar o dístico há mais de um ano tentando a sua vez de ser um fecho aceitável
o mal de muita gente é que anda aos gritos
o mal de alguns de nós é já a esgana

(de Memórias do Contencioso, 1980 - reproduzido em A Musa Irregular, edições Asa, 2ª ed: 1996 - chamo a atenção para a capa que alude a este poema, numa ilustração da filha do autor, Bárbara Assis Pacheco)
[outros melros II]

DANIEL S. G.

novamente os melros
ponderam
as nossas mãos

delicados
os olhos do outono
inaudíveis

amáveis na tristeza certa
do verso

e são a respiração
que antecede
o movimento dos gestos

os melros


*


no inverno morro devagar
com as pedras

olho a terra procuro as tulipas
e escrevo a sede
com a língua exposta dos melros

por toda a parte o ruído da água
ilumina a lentidão das horas

(de a respiração dos gestos, Difel, difusão editorial, 2000)
[outros melros I]

MICHAEL DONHAUSER

TU, APELO DO MELRO


Tu, apelo do melro, ainda e agora
Quando a tarde lilás e brilha
Assim sobre o fim das ruas
Das praças e entre as varas
Varas finas dos choupos, onde tu
E cantas, limpidamente com as vozes
Ou com um grito rouco e
Negro a clareira atravessas

[de Das Coisas, tradução colectiva (Mateus, Outubro de 1998) revista completada e apresentada por João Barrento, Quetzal editores, 2000]
WALLACE STEVENS

Thirteen Ways of Looking at a Blackbird

Treze Modos de Olhar um Negro Melro

I
Among twenty snowy mountains,
The only moving thing
Was the eye of the blackbird.


Em vinte montes nevados
Um só movimento:
Era o do olho do melro.

II
I was of three minds,
Like a tree
In which there are three blackbirds.


Eu estava com três ideias,
Como uma árvore
Onde se encontram três melros.

III
The blackbird whirled in the autumn winds.
It was a small part of the pantomime.


Rodopiou o melro em ventos outonais.
Era uma pequena parte da encenação.

IV
A man and a woman
Are one.
A man and a woman and a blackbird
Are one.


Um homem e uma mulher
São um.
Um homem e uma mulher e um melro
São um.

V
I do not know which to prefer,
The beauty of inflections
Or the beauty of innuendoes,
The blackbird whistling
Or just after.


Não sei qual preferir,
A beleza das inflexões
Ou a beleza de insinuar,
O melro assobiando
Ou logo depois.

VI
Icicles filled the long window
With barbaric glass.
The shadow of the blackbird
Crossed it, to and fro.
The mood
Traced in the shadow
An indecipherable cause.


O sincelo cobriu a vitrina
De um vidro agressivo.
A sombra do negro melro
Cruzou-a de um lado ao outro.
O ânimo
Marcou na sombra
Um motivo indecifrável.

VII
O thin men of Haddam,
Why do you imagine golden birds?
Do you not see how the blackbird
Walks around the feet
Of the women about you?


Oh magros homens de Haddam,
Porque imaginais aves d'oiro?
Então não vêdes que o negro melro
Circula à volta dos pés
Das mulheres junto a vós?


VIII
I know noble accents
And lucid, inescapable rhythms;
But I know, too,
That the blackbird is involved
In what I know.


Sei de ilustres ênfases
E de claros, inevitáveis ritmos;
Mas sei também
Que o melro está misturado
Com as coisas que sei.

IX
When the blackbird flew out of sight,
It marked the edge
Of one of many circles.


Quando o melro voou para além do olhar,
Marcou o limite
De um de muitos círculos.

X
At the sight of blackbirds
Flying in a green light,
Even the bawds of euphony
Would cry out sharply.


À vista dos melros
Voando numa luz verde,
Até os palavrões de eufonia
Hão de bradar aguçados.

XI
He rode over Connecticut
In a glass coach.
Once, a fear pierced him,
In that he mistook
The shadow of his equipage
For blackbirds.


Atravessou o Connecticut
Numa carruagem de vidro.
Um medo trespassou-o
Certa vez em que confundiu
A sombra do seu equipamento
Com negros melros.

XII
The river is moving.
The blackbird must be flying.


O rio está em movimento.
O melro tem de estar em voo.

XIII
It was evening all afternoon.
It was snowing
And it was going to snow.
The blackbird sat
In the cedar-limbs.


Houve crepúsculo toda a tarde.
Estava nevando
E ainda ia nevar.
O melro pousou
Nos limites do cedro.

(tradução minha - poema original recolhido na internet e publicado pela primeira vez em Collected Poems of Wallace Stevens, de 1954)

23.9.03

[mesmo que nenhuma das concorrentes do Ídolos, da Operação Triunfo ou do Chuva de Estrelas me pareça ou tenha parecido operária têxtil, quando passo os olhos por programas desse género não consigo deixar de lembrar uma das mais belas canções de Rui Veloso]

CARLOS TÊ

Balada da Fiandeira


Quando ela deixa o turno fabril
Apanha o autocarro e regressa
Espalha em casa o odor textil
E a roda viva recomeça

Ao pôr do sol faz uma pausa
E pensativa vai à janela
Como se dali fosse ver tudo
O que é mistério á volta dela

Depois liga o rádio p'rá onda média
Ansiosamente remexe o botão
Em busca daquela força
Que às vezes vem numa canção

E se passarem a janis joplin
Fica acessa num repente
Põe-se a dançar em frente ao espelho
E sobe a saia acima do joelho

E vai cantando no quarto-de-banho
Aproveitando a ressonância
A vizinhança acha estranho
E até comenta a extravagância

Mas ela é assim está-se nas tintas
Tem ganas de se ir embora
Mandar o seu mundo ao ar
Subir ao palco e ser cantora

(do álbum Fora de Moda, 1982)

22.9.03

VASCO MIRANDA

Vasco Miranda é padre. E não pretende ser um «príncipe dos poetas», como quase todos os poetas se pretendem, mesmo os de condição poética proletária. Posto o que me suspendo, a ouvir o correr de livros que se fecham. E com os que ficarem ainda abertos vou continuar. Direi que os que me acompanham se não arrependerão?
Porque a seu modo, Vasco Miranda é único entre os nossos poetas de hoje. Vem-lhe tal singularidade não apenas de resolver a sua poesia, apesar de padre, num domínio terreno em que podemos reconhecê-lo da nossa condição humana - mesmo aqueles dentre nós que lhe não entendemos a fé -, mas ainda porque os seus versos lhe exprimem uma «aprendizagem» adentro mesmo da dimensão dessa «fé».

(Vergílio Ferreira, no prefácio a Dizer, Amar)

(...) A sua poesia veemente e indignada, ou de uma cruciante pungência sempre apaixonada, que se espraia em alguns dos mais belos versos livres portugueses que têm sido escritos em português (...), é de uma expressão directa, que apenas se preocupa com um desataviamento total e uma limpidez que atinge tons de profetismo bíblico. Menos paradoxalmente do que poderia parecer, este católico e sacerdote é, com as suas grandes qualidades humanas e o seu desembaraço apaixonadamente lírico, talvez o melhor exemplo actual de um catolicismo moderno, que encontra acentos vigorosos para dizer o que certo neo-realismo só frouxamente realizou. (...)
(Jorge de Sena, nas Líricas Portuguesas, II volume - texto provavelmente de 1975)

Nasceu em 1922, em Junça, aldeia do concelho de Almeida.
Foi ordenado padre em 1943.
Morreu em 1976.


PALCO

Dadas as mãos,
Enlaçados os dedos,
Unidos os destinos,
Ficámo-nos extáticos, frente ao altar do universo,
Como se fora no princípio do mundo!...

- No começo da Vida!

Um canto de ave, ante a manhã, voou sobre as nossas cabeças
E perante o Sol que rompia no horizonte largo
Gozámos o poema inédito do Primeiro Dia,
Renascido das cinzas dum mundo velho e apodrecido
Como Eva redentora saída das costas inconscientes do novo Adão.

(de Luz na Sombra, 1946)


HISTÓRIA PARA OS NOVOS

Porque pudemos, enfim,
Mudar o ritmo da vida,
Olhando as coisas de alto,
Lídia e eu passearemos de mãos dadas
Todas as tardes, ao cair da noite.
Haverá risos à nossa passagem
Se bem que não andemos reinventando o paraíso.
(O poeta Rimbaud, esse, sim, quis reinventar o amor!...)
Mas não importa.
Indiferentes aos olhos cúpidos e aos risos escarninhos
- Poeta e Musa -
caminharemos seguros de nosso gesto
certos de não sentir o gosto amargo da maçã.

(de A Vida Suspensa, 1953)


Olha Jorge quando vier a morte
E virá cedo
«Não deixes fechar-me os olhos»
Eflorescências salitrosas me rebentarão das órbitas
Para queimar as mãos que fechar-mos queiram
- Não pode a luz negar-se a quem bêbado dela
Inventou em cada dia uma madrugada
E eis tudo quanto deixo a quem me herde
Não Jorge não deixes fechar-me os olhos
Não deixes roubar-me a luz que em vida
Neles sempre tive
Estendido no caixão sereno e impoluto
Irei de olhos abertos
Porque eu quero e sei que hei-de morrer
Como quem vive

1956

8

De alimentar-me de Ti como Jonas do ventre da baleia
De inserir-me em teus braços chicoteados de infinitos horizontes
De beijar-Te o rosto como uma chaga de luz
De amar-Te de um amor qual nunca amado
Na humana carne em que temerário confio
Por uma humanidade possível que o impossível não desmente
Aceito inscrever-me a fogo no teu Rosto
E ser vomitado ao fim do terceiro dia
Na cruz de sol de todos os milénios futuros

(de Invenção da Manhã, 1963)


VIII

Junto às muralhas de Babilónia Elsa sorri.
Os olhos de Elsa são duas cigarras verdes
E as mão de Elsa um salmo entornado
De lábios queimando na vertigem do mar
Salgado. Mar Morto mare-moto rubro denso mar
No separar de águas vermelhas
De paixão. Mar de Elsa olhos-cigarras
Na salmódia digital entrelaçada
De voluptuosa placidez peso sensorial
De moléculas-corpo na febre de milénios
Devindo noosféricos e ao fim o ponto Ómega.
Junto às muralhas de Babilónia e nem lá
Os olhos de Elsa são duas crateras
De tráfico cigano em rosas opiado.
Junto às muralhas de Babilónia e nem lá
Minha Nossa Senhora do céu e da Terra
Minha Nossa senhora dos olhos de Elsa
Rogai por mim e por nós nos olhos dela
Rogai por mim e por nós nas duas cigarras verdes!
Junto às muralhas de Babilónia Elsa sorri.
Minha nossa Senhora, Rainha, acordai no bronze
Do silêncio intérmino espacial
A voz da vossa eternidade presente.
Porque vos vi e amei nos olhos dela
(Com Ezra Pound declaro: «o paraíso não é artificial»!)
A minha alma, Senhora, mais fundo vos sente.

Poetas do mundo, acordai nos olhos d'Elsa,
Que o mundo, na carne d'Elsa, não mente!

(de O Ciclo de Elsa, 1971)


[poemas retirados de Dizer, Amar, Portugália editora, 1971 - colecção Poetas de Hoje]

21.9.03

[gosto muito de inventários XXI]

JOSÉ SARAMAGO

«Digo pedra»


Digo pedra, esta pedra e este peso,
Digo água e a luz baça de olhos vazos,
Digo lamas milenárias das lembranças,
Digo asas fulminadas, digo acasos.

Digo terra, esta guerra e este fundo,
Digo sol e digo céu, digo recados,
Digo noite sem roteiro, interminada,
Digo ramos retorcidos, assombrados.

Digo pedra no seu dentro, que é mais cru,
Digo tempo, digo corda e alma frouxa,
Digo rosas degoladas, digo a morte,
Digo a face decomposta, rasa e roxa.

(de Provavelmente alegria, 1970)
[gosto muito de inventários XX]

TOM JOBIM

ÁGUAS DE MARÇO


É pau, é pedra, é o fim do caminho
É um resto de toco, é um pouco sozinho
É um caco de vidro, é a vida, é o sol
É a noite, é a morte, é um laço, é o anzol
É peroba do campo, é o nó da madeira
Caingá, candeia, é o Matita Pereira
É madeira de vento, tombo da ribanceira
É o mistério profundo, é o queira ou não queira
É o vento ventando, é o fim da ladeira
É a viga, é o vão, festa da cumeeira
É a chuva chovendo, é conversa ribeira
Das águas de março, é o fim da canseira
É o pé, é o chão, é a marcha estradeira
Passarinho na mão, pedra de atiradeira
É uma ave no céu, é uma ave no chão
É um regato, é uma fonte, é um pedaço de pão
É o fundo do poço, é o fim do caminho
No rosto o desgosto, é um pouco sozinho
É um estrepe, é um prego, é uma conta, é um conto
É uma ponta, é um ponto, é um pingo pingando
É um peixe, é um gesto, é uma prata brilhando
É a luz da manhã, é o tijolo chegando
É a lenha, é o dia, é o fim da picada
É a garrafa de cana, o estilhaço na estrada
É o projeto da casa, é o corpo na cama
É o carro enguiçado, é a lama, é a lama
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um resto de mato, na luz da manhã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração
É uma cobra, é um pau, é João, é José
É um espinho na mão, é um corte no pé
É um passo, é uma ponte, é um sapo, é uma rã
É um belo horizonte, é uma febre terçã
São as águas de março fechando o verão
É a promessa de vida no teu coração

(editado pela primeira vez em 1972, num vinil 33 rpm - Disco de Bolso, o tom de Tom Jobim e o tal de João Bosco - encartado no semanário carioca O Pasquim; foi depois editado em 1974 no LP Elis & Tom, seguindo-se-lhe inúmeras vozes e versões)
[gosto muito de inventários XIX]

JORGE LUIS BORGES

Inventário


Há que encostar uma escada para subir. Falta-lhe um degrau.
O que podemos procurar no alto
Senão o que a desordem amontoa?
Há o cheiro a humidade.
O entardecer entra pela casa em lâminas de luz.
As vigas do céu raso estão próximas e o piso está vencido.
Ninguém ousa pôr-se de pé.
Há um velho divã desengonçado.
Há umas ferramentas inúteis.
Ali está a cadeira de rodas do morto.
Há um pé de candeeiro.
Há uma rede de dormir paraguaia, com borlas, a desfiar-se.
Há utensílios e papéis.
Há uma estampa do estado-maior de Aparicio Saravia.
Há um velho grelhador a carvão.
Há um relógio de tempo parado, com o pêndulo partido.
Há uma moldura desdourada, sem tela.
Há um tabuleiro de cartão e umas peças desemparelhadas.
Há uma braseira de dois pés.
Há uma arca de cabedal.
Há um exemplar bolorento do Livro dos Mártires de Foxe, em
[intrincada escrita gótica.
Há uma fotografia que já pode ser de qualquer pessoa.
Há uma pele já gasta que foi de tigre.
Há uma chave que perdeu a sua porta.
O que podemos procurar no alto
Senão o que a desordem amontoa?
Ao esquecimento, às coisas do esquecimento, acabo de erguer
[este monumento,
Sem dúvida menos duradouro que o bronze e que se confunde com elas.

(de A Rosa Profunda, 1975 - incluído em Obras Completas III, editorial Teorema, 1998 - tradução de Fernando Pinto do Amaral)
[gosto muito de inventários XVIII]

JORGE CLAUDIR

EGOCICLO NÚMERO DOIS


Meu inconsciente
Meu subconsciente
Meu consciente.

Minhas vísceras
Meus ossos
E meus músculos.

Minha pele,
Meus pelos
E minha roupa.

Minha cama
Meu quarto
Minha casa.

Minha rua
Minha escola
E meu bairro.

Minha cidade,
Meu planeta
Minha galáxia.

O Universo
A morte
Meu inconsciente...

(de Reciclagem, incluído em Ebulição da Escrivatura - treze poetas impossíveis, Civilização Brasileira, 1978)