17.9.13

JORGE DE SENA

[...] como sublinhei, indirectamente num dos “exorcismos”, não sou dos tolos que voltam para o anonimato quotidiano por parte destes ladrões de estrada, que compõem, com honrosas excepções, esta pátria de alguns heróis e muitos malandros. No entanto, sente-se finalmente uma efervescência e uma consciencialização indignada, a todos os níveis populares, de que é preciso sair do beco e “andar para a frente” – e, sobretudo, uma revoltada exigência de que a ladroeira e a negociata sejam postas na ordem (o que pode, também, abrir caminho a todos os perigos – mesmo de D. Sebastiões chamados Spínolas).

(carta a Helder Macedo, datada de «Lisboa, 17 de Agosto de 1972»)

16.9.13

VÍTOR NOGUEIRA


GEOLOGIA

Às vezes são homens de bem
empurrados para esta vida,
resquícios da erosão da montanha,
paisagens antigas
enterradas sob o gelo.

Nada está garantido
numa geologia tão frágil. Este chão
pode virar-se sem aviso.
Ainda assim, sejam bem-vindos,
fiquem tristes à vontade.

(de Mar Largo, &etc, 2009)

15.9.13

GILBERTO MENDONÇA TELES


CAMUFLAGEM

Havia um sujeito puro,
capaz das coisas mais ternas.
Veio o mundo com seus m'urros,
com seus disfarces de fera

(casco de ouro reluzindo
na arquitetura da noite)
e transformou tudo em cinza
na gestação de seus coices.

Cavalgou pelo silêncio
seus cavalos cor de barro
e foi largando no chão
o -ão do não de seus passos.

Depois, com dentes e unhas,
mostrou-se inteiro, no avesso:
era outro i'mundo, mas c'ego,
não tinha garras aduncas,

não tinha amarras nos murros,
não era fúria nem f'era,
nem viu o sujeito puro,
capaz das coisas mais ternas.


(de A Raiz da Fala, 1972)