Poesia distribuída na rua.

23.12.22

JOSÉ BENTO
 

30
 
  Difícil florir no Inverno.
                                       Mas pétalas afoitam-se:
cresce um murmúrio da escuridão humosa,
coalha ao desembainhar-se contra a neve
ou entre o vento aguçado na pedra
laborada pelos astros, a chuva.
Uma cor dando nome a um lugar,
um aroma a projectar essa cor
e a secreta pulsação
que ordena a geometria de tantos estilhaços
de dispersos vitrais
                                  – resistem e arvoram
essa afirmação que não vacila para ser,
aceita a violência oculta que a enuncia.
 
  Quem investe ramos, caules, fustigadas sebes
de tão precária opulência?
Não lhes perguntes, não me perguntes:
sabem tanto como eu, tudo desconhecemos
para uma resposta supérflua.
Olhamos e o nosso olhar retém
quanto pode: visão breve
para não ser ferida pelo espólio das corolas.
 
  Sabemos que não aguardam a estação propícia,
vendados ao que os ameaça mas não assustaria
se pudessem reconhecê-lo. Não o lamentemos,
nem a nada, a ninguém.
                                       Não existem ventura, desventura
se escolher não é possível.
 
  Aprendemos assim que um florescer
brota em mim, em ti,
e rumo ao ouro se encaminha
para nos encorporarmos sem o termos pedido,
indagado a causa e a lei desta mudança.
Um movimento subjuga e degrada
o espaço em nossa volta até hostilizar-nos?
 
  Existes aí plenamente: és quanto vejo.
Onde estou: isto basta
para encontrarem quem te sou:
anteriores a tudo, cada um de nós
criado pelo outro e para o outro,
hoje e sempre distantes de cuidar
se nos são habitáveis estes dias,
esta casa onde a luz é tanto um gume
como um têxtil musical a exaltar-nos.
 
  Este florir radioso rescende ao meu apelo
e o seu eco em ti a desfolhar-se:
tímidas pétalas abandonam-se em furtivas,
delgadas águas que não poderão lembrar-nos.
Meus olhos no que és hoje compõem
tudo o que foste em mim.
                                           Não interrogam
porque ambos nos vamos descobrindo
em nosso sangue que se despede para unir-nos
sem a isso chamarmos dor:
                                             conhecimento,
transcurso de horas num esvair insone.
 
 
(in Silabário, Relógio d’Água, 1992)

 

22.5.22

SERGIO SOLMI


5
Na poesia, o corpo está na vanguarda. Por isso o poeta prossegue inerme e cego: mas cego como Homero, não como Tirésias. Por isso a vida da poesia não reside tanto na ideia, e nem na palavra, e nem tanto, diria até, na metáfora quanto na atitude, no modo de surgir e recair do canto, no timbre e no matiz de uma voz e, em geral, nos «imponderáveis» mais intimamente ligados às reacções secretas e irreflectidas da nossa natureza física. E é por isso que a mais sólida arquitectura do canto é construída –sempre – sobre a individualidade mais acidental e única.

6
É também necessária ao pensamento uma certa «idiotia»: uma lentidão desajeitada, a presença de obstáculos que um espírito superficial resolve e supera num abrir e fechar de olhos, A nossa reflexão mais verdadeira nasce quando descobrimos a monstruosidade, o carácter impensável «daquilo que é evidente». Para viver, a inteligência deve forçosamente nutrir-se de estupidez: o que seria uma inteligência sem alimento? Certos espíritos eloquentes e aproximativos, implacáveis dissertadores e sofisticadores, aqueles que procuram, numa discussão, ter sempre «a última palavra», dão-nos um exemplo desta inteligência ágil e vazia, sem sustento nem substância.
O nosso pensamento mais profundo nasce por vezes repentinamente do estagnar passivo da nossa vida, como o nenúfar da lama. No fervilhar infinito de tolices e inutilidades, na poeirada inconsciente a que chamamos «vida interior», é por vezes como um relâmpago momentâneo: as palavras insulsas e mecânicas, as incertas visões corpóreas que a onda limosa trazia consigo agrumulam-se e organizam-se, assumem forma: é o mistério carnal de toda a criação, a luz que irrompe sobre o caos.

(excerto de «Poesia, acordo supremo...», datado de 1925-1930, incluído em Meditações sobre o Escorpião e outras prosas, traduzido por Ana Cláudia Santos, acompanhado de desenhos de Fernando Mesquita e editado pela Barco Bêbado, em 2022)

18.2.21

JOAN MARGARIT


POÉTICA

Alguém que mede versos e que guarda
a solidão dos ossos de Vallejo
e a longa morte de Espriu na sua alma.
Que se encomenda à sombra de Quevedo
movendo o úmero com a esferográfica
para escrever a letra de um bolero.
Se nunca ninguém ria ou chorava
com algum desses versos que me invento
onde me leva – pensaria – esta história?
Pelos filhos mortos, pelos amores sem manhã,
pelo tempo que nos ameaça como uma arma,
por tanto mal enevoado que não é notícia.
Por tudo isso se escreve poesia.


(tradução de Egito Gonçalves, in Quinze Poetas Catalães, Limiar, 1994)

14.5.19


JOÃO MOITA


Sentado ao fogo, junto da minha mulher, inquilina da minha solidão, recordo os anos da juventude. Nessa altura, o mosto fermentava nas caves da idade, e nós aguardávamos o vinho maduro com a impaciência dos sóbrios. Tudo foi preparação. Os enforcados amavam as nossas travessias, as mães rezavam com as mãos postas sobre o linho corrompido pelo sal. Onde as aves desertavam, erguíamos um templo de suspeita e sedução. Eram os dias do amor e do arrependimento. Hoje sei que a embriaguez é só esta indiferença com que pressinto o sangue nos dedos da minha mulher, que borda, e que a sabedoria nos abandona no fim. Ainda esta noite comungarei com deus. Amanhã serei as uvas frescas na videira.

(Rembrandt, Tobias e Sua Mulher)


(de Fome, in Uma Pedra sobre a Boca, Guerra & Paz, 2019)




28.3.19

RUY BELO


Nunca ao indefeso leitor de poesia terá sido fácil discernir o que, na produção contemporânea, é ou não poético e o continuará a ser — ou a não ser —, alguns anos volvidos. Teria para isso de conseguir determinar pouco menos que toda a linha futura da história da poesia. Mas que essas dificuldades são hoje em Portugal quase insuperáveis, ninguém de olhos limpos o poderá negar.
Muitas causas para isso contribuem, desde o mais ou menos larvado desrespeito pela liberdade e isenção da crítica até à conversão da mediocridade em ideal de arte. Dir-se-á que esta questão é secundária, que sempre o poeta surgiu além ou apesar de cenáculos, compadrios e venalidades de configuração mais ou menos típica, com maior ou menor consciência praticados.
Mas, no limiar do exercício da crítica, levanta-se a indeclinável obrigação de procurar ao menos apontar para o mal. Sendo a formação do gosto poético tradicionalmente deixada à livre e desconexa iniciativa de quem lê por ler ou para, lendo, escrever, impõe-se-nos o trabalho preliminar de ao menos levantar a voz para, quanto mais não seja, não colaborarmos nessa obra de perversão do gosto. E a crítica, embora de feição construtiva ou talvez por isso mesmo, não poderá deixar de se impor esse ingrato trabalho, até por uma elementar questão de honestidade.
Ultimamente tem-se abusado dessas técnicas de desnorteamento que, por fraqueza ou ambição desproporcionada, sempre aliás se usaram. A poesia, que outrora se apresentava discretamente, de mãos caídas, aparece agora divulgada, se não até construída, através de métodos mais ou menos jornalísticos, não sabendo ou não querendo os poetas renunciar a um maior alcance no espaço, em favor de uma mais autêntica sobrevivência no tempo. Daí a dificuldade — momentânea apenas, valha-nos isso — em distinguir entre poetas que o são e pessoas — respeitáveis pessoas, vamos lá — que por tal se pretendem fazer passar.
Se outro remédio não houver, resta aos autênticos poetas, àqueles que só a uma norma íntima afinal obedecem, resta — dizíamos nós — aos poetas cultivar a impopularidade, certos de que a poesia é, como toda a arte, essencialmente impopular. Se houverem de prescindir de público, aliás tão necessário na progressiva definição dessa norma íntima, que lhes não faleça a coragem de saber prescindir. Esse público acabará por se formar, não talvez a tempo de influir beneficamente na criação da obra, mas de qualquer forma em condições de delimitar-lhe o espaço de circulação.
Só é pena que, podendo porventura preencher lugares altamente remunerados ou pelo menos granjear uma merecida consideração social, os aventureiros da poesia não saibam eximir-se a perturbar o trabalho daqueles que à poesia sacrificaram pelo menos elevada remuneração e alguma consideração social.


(excerto de «Atentados contra a criação artística», in Na senda da Poesia, 1969)

2.3.19

[outros melros LXXI]


LUÍS FILIPE PARRADO


UM MELRO NO TEMPO

Negro, anónimo, bravio,
demora-se por uns segundos apenas
(em voo é mais difícil de captar)
Na cerca de ferro forjado
Do jardim público.
Eu escuto-o, fico em suspenso. E confesso
que, lidos os mapas astrais
e os melhores tratados
de ornitologia,
continuo às cegas,
sem compreender porque me comove
tanto este assobio dilacerante.
Consegues ouvi-lo?
Sim. Canta como se tudo estivesse
no seu lugar, como se este
fosse o primeiro de todos os dias do mundo,
como se nada de mal nunca nos pudesse acontecer.


(in «Nervo – colectivo de poesia» / 4, Janeiro/Abril 2019)

13.2.19


THEODOR W. ADORNO


Sentis a poesia lírica como um elemento de oposição à sociedade, de natureza totalmente individual. A vossa resposta emocional insiste que assim permaneça, que a expressão lírica, em fuga das coisas materiais, evoque a imagem de uma vida liberta da coacção da prática dominante, do utilitarismo, da pressão obstinada do instinto de conservação. Contudo, esta exigência, em relação à poesia lírica, a reivindicação da palavra inviolada, é, em si mesma, de natureza social. Ela contém em si o protesto contra uma situação social que cada individuo vive como hostil e alheia, fria e opressora, e é pela negativa que essa situação se inscreve na composição poética: quanto mais pesada é a sua carga, maior a intransigência com que o poema lhe resiste, não se vergando a nada que lhe seja heteronómico e constituindo-se inteiramente de acordo com a sua própria norma. O seu distanciamento da pura existência converte-se na medida do que esta tem de falso e nocivo. Em protesto contra essa realidade, o poema exprime o sonho de um mundo onde a vida fosse diferente. A idiossincrasia do espírito livre contra a violência opressiva das coisas é uma forma de reacção contra a reificação do mundo, o domínio das mercadorias sobre as pessoas que se difundiu desde o início da Modernidade e que se desenvolveu a partir da Revolução Industrial, a ponto de se converter na força preponderante da existência. O rilkeano “culto dos objectos” insere-se igualmente no círculo mágico dessa idiossincrasia, enquanto tentativa de atrair e dissolver objectos estranhos no campo da expressão pura e subjectiva, conferindo credenciais metafísicas à sua estranheza; e a debilidade estética deste culto dos objectos, este gesto arremedando o oculto, mescla de religião e artes aplicadas, deixa simultaneamente entrever o peso efectivo da reificação que já não se deixa dourar com uma qualquer aura lírica, nem abranger pelo sentido.
Dizer que esta ideia, que para nós se converteu num dado imediato, praticamente numa segunda natureza, é de teor integralmente moderno, não é senão exprimir de outro modo a essência social da poesia lírica.


(excerto da conferência Poesia lírica e sociedade, proferida em 1957; tradução de Maria Antónia Amarante, Angelus Novus, 2003)

4.2.19

JORGE DE SENA


Antes de mais, reflictamos que, no estado actual da civilização, muita gente há, a esmagadora maioria, para quem a literatura não existe. E só os nossos desejos ou anseios humanísticos nos demonstram que, modificadas as circunstâncias, e tornado geral o hábito da leitura e distribuída imparcialmente a educação do gosto, aquilo a que chamamos as grandes obras literárias encontrará uma igual e equitativa receptitividade. De resto, só por si, o hábito da leitura não significa um conhecimento ou reconhecimento da literatura como tal. Mas, ainda que esse reconhecimento se processe em muitos leitores, daí não resulta que eles sintam necessidade de situar, correlacionar, comparar, historiar o que estimam, que os fira o apetite de o comunicarem a outros as observações que fizeram, ou que a literatura ocupe, em suas vidas, um lugar preponderante, absorvente, que seja ela o que dá sentido e estrutura a essas vidas. Do mesmo modo, estudar literatura não implica também um conhecimento ou reconhecimento dela, em extensão e em profundidade, cada vez mais se observa, no mundo de hoje, a tendência para limitar o âmbito do que se estuda, para isolar do resto o objecto de estudo, para elevar à contemplação satisfeita as últimas minudências de que se é capaz. Cada vez mais se observa, até, o curioso fenómeno de estudar literatura sem conhecê-la, evitando-se mesmo conhecê-la, preferindo-se as considerações críticas e a análise dos métodos críticos às próprias obras a que umas e outros se aplicam ou seriam aplicáveis. E uma atitude dessas de modo algum pressupõe que se pretenda ensinar ou viver o que, afinal, é já um objecto de segunda ordem. Também o ensino da literatura tende, cada vez mais, para o desconhecimento, a desestima, a não-vivência dela. De resto – e decorre da própria essência da literatura – teria de ser necessariamente assim. Porque a literatura não pode ser ensinada. Ensinar seja o que for é apresentar um instrumental adequado e explicar a maneira de uma pessoa tirar o proveito dele. Daí resulta que se ensina a escrever estudos sobre literatura, e estudos sobre os estudos de literatura, indefinidamente; ou se ensina a ensinar literatura. Quando afinal, aquilo que verdadeiramente, e do ponto de vista da literatura como tal, pode ser ensinado, não é uma literatura sem história ou uma história sem literatura, mas a consciência de que, como tal, e como sucede a todas as coisas ante a lucidez harmoniosa do que são e representam, a literatura não se basta a si própria, e só é literatura, verdadeira e autêntica literatura, quando deixa de o ser, isto é, quando ultrapassa, por sua própria essência, os quadros em que se define como autónoma e independente. O único ensino verdadeiro é este: o de que a literatura é um equilíbrio precário entre ser ela mesma e não ser tudo aquilo que se espera ou se pretende que ela seja.


(excerto do ensaio «Amor da literatura», datado de 1961 e incluído em O Reino da Estupidez - I, 3.ª edição: Edições 70, 1984)

11.1.19

T. S. ELIOT


IV

Descendo a pomba corta o ar
Com chama de incandescente terror
Cujas línguas anunciam
A única remissão do pecado e do erro.
A única esperança, ou então desespero
Reside na escolha da pira ou da pira –
Para sermos redimidos do fogo pelo fogo.

Quem, então, inventou o tormento? O amor.
O amor é o Nome mal conhecido
Atrás das mãos que teceram
A intolerável camisa de chamas
Que o poder humano não pode arrancar.
Nós apenas vivemos, apenas suspiramos
Consumidos pelo fogo ou pelo fogo.


(da sequência «Little Gidding», in Quatro Quartetos, tradução de Maria Amélia Neto, Edições Ática, 1983 / original de Four Quartets, 1943)

6.1.19


JORGE DE LIMA


O GRANDE CIRCO MÍSTICO

O médico de câmara da imperatriz Teresa – Frederico Knieps resolveu que seu filho também fosse médico,
mas o rapaz fazendo relações com a equilibrista Agnes,
com ela se casou, fundando a dinastia de circo Knieps
de que tanto se tem ocupado a imprensa.
Charlote, filha de Frederico, se casou com o clown,
de que nasceram Marie e Oto.
E Oto se casou com Lily Braun a grande deslocadora
que tinha no ventre um santo tatuado.
A filha de Lily Braun – a tatuada no ventre
quis entrar para um convento,
mas Oto Frederico Knieps não atendeu,
e Margarete continuou a dinastia do circo
de que tanto se tem ocupado a imprensa.
Então, Margarete tatuou o corpo
sofrendo muito por amor de Deus,
pois gravou em sua pele rósea
a Via-Sacra do Senhor dos Passos.
E nenhum tigre a ofendeu jamais;
e o leão Nero que já havia comido dois ventríloquos,
quando ela entrava nua pela jaula a dentro,
chorava como um recém-nascido.
Seu esposo – o trapezista Ludwig – nunca mais a pôde amar,
pois as gravuras sagradas afastavam
a pele dela o desejo dele.
Então, o boxeur Rudolf que era ateu
e era homem fera derrubou Margarete e a violou.
Quando acabou, o ateu se converteu, morreu.
Margarete pariu duas meninas que são o prodígio do Grande Circo Knieps.
Mas o maior milagre são as suas virgindades
em que os banqueiros e os homens de monóculo têm esbarrado;
são as suas levitações que a platéia pensa ser truque;
é a sua pureza em que ninguém acredita;
são as suas mágicas que os simples dizem que há o diabo;
mas as crianças crêem nelas, são seus fiéis, seus amigos, seus devotos.
Marie e Helene se apresentam nuas,
dançam no arame e deslocam de tal forma os membros
que parece que os membros não são delas.
A platéia bisa coxas, bisa seios, bisa sovacos.
Marie e Helene se repartem todas,
se distribuem pelos homens cínicos,
mas ninguém vê as almas que elas conservam puras.
E quando atiram os membros para a visão dos homens,
atiram as almas para a visão de Deus.
Com a verdadeira história do grande circo Knieps
muito pouco se tem ocupado a imprensa.

(de A Túnica Inconsútil, 1938)

14.12.18

[outros melros LXX]


LUÍS FILIPE JOÃO


(Mas) O que é um melro?

É uma ave, veste negro fulvo
e bico loiro.
(não gosta do amarelo
como toda a gente.)

Saltita no Outono
em seio úbere ou carvão
incandescente.

Enjeita ninho
não inocente.

É poeta: alimenta ofício
de ave bem atenta.

(de Chocolate em Repouso, Átrio, 1994)

7.11.18

MANUEL GUSMÃO


Carlos de Oliveira pertence a uma tradição que na modernidade é a da autoconsciência do trabalho poiético da forma.  Entretanto, esse trabalho não é praticado nem imaginado como um simples labor construtivo, mecânico ou mecanizável, todo método e cálculo. Esse trabalho inclui a preparação paciente de uma «pequenina explosão»; inclui a espera, a passividade disponível, o acontecimento imprevisível. Como o mostrou convincentemente Gustavo Rubim, esse trabalho «desfaz a oposição entre o cálculo e o acontecimento».
Há a este propósito uma longa tradição que pensa de forma dualista a poesia e as poéticas. Haveria num pólo o poeta «voyant», inspirado, possuído ou órfico (a matriz está em Platão) e, num outro pólo, o poeta «artiste», artífice, premeditado ou hermético (a matriz estaria agora em Aristóteles). De um lado, a inspiração, a força, a «chama», a energueia e, do outro, o cálculo, a forma, o «cristal», o ergon. A oposição não é de todo inverosímil, nem inútil, é possível vê-la como um particular sintoma da dificuldade de pensar uma identidade essencial e a-histórica do que seria a poesia. Mas Carlos de Oliveira é precisamente um daqueles que mostra como o dualismo rígido dessa bipolaridade pode deixar de funcionar: a sua obra é a de um artesão afectado pela paixão.


(excerto de «A Arte da Poesia em Carlos de Oliveira», in Neo-Realismo — Uma Poética do Testemunho (alguns exercícios de releitura), Edições Avante​, 2018)

28.10.18


CECÍLIA MEIRELES


CENÁRIO

No jardim que foi de Gonzaga,
a pedra é triste, a flor é débil,
há na luz uma cor amarga.
Os espinhos selvagens crescem,
única sorte destas árvores
destituídas de primavera,
secas, na seca terra ingrata,
que é uma cinza de inúteis ervas
solta sob os pés de quem passa.

No jardim que foi de Gonzaga,
oscila o candeeiro sem lume,
apodrece a fonte sem água.
Longas aranhas fulvinegras
flutuam nas moles alfombras
do antípoda universo aéreo.

Um flácido silêncio adeja
sobre esses restos de uma história
de sonho, amor, prisões, seqüestros,
degredos, morte, acabamento…

Vagas mulheres sem notícias,
pobres meninos inocentes
circulam por essas escadas,
pisam as folhas secas, mostram
portas de anil desmoronado…

A névoa que enche os aposentos
não vem do dia nem da noite:
vem da cegueira: ninguém sente
o ranger da pena, na sombra,
o luzir da seda das véstias,
à luz de altos caules de cera…

Ninguém vê nenhum livro aberto.
Ninguém vê mão nenhuma erguida,
com fios de ouro sobre o mundo,
para um bordado sem destino,
improvável e incompreensível
remate do fátuo vestido…

Apenas um cacho de rosas,
que nascem pálidas e murchas,
habita um desvão solitário,
quer falar, porque veio a custo
de antigas lágrimas guardadas
num chão sem ouro nem diamantes…

Mas inclina-se à tarde, ao vento,
e como um rosto humano morre,
sem dizer nada, inerme e triste,
ao peso do seu pensamento,
– como acontece entre os amantes.


(de Romanceiro da Inconfidência, 1953)

19.9.18

MENDES DE CARVALHO


CANTIGA DO POBREDIABISMO DE CAFÉ


Intelectuais reconhecidos pelo notário
poetas muitos reconhecidos pela família
romancistas traduzidos lá fora cá pra dentro
o dr. bastante burro que faz mal às musas
o escultor que tacteia a senhora escultural
o ensaísta amigo das poetisas lusas
o crítico ficheiral arrumado responsável
irresponsável vespertinamente às quintas-feiras
a viúva abundante devoradora de miúdas
pequenas com muito jeito pró teatro e tudo
mancebos beija aqui beija ali beija acolá e nada
o tatebitatismo do senhor que foi ministro
o fotógrafo de arte que tem dentes postiços
a postiça menina que se atira à dentadura
o profissional contador de anedotas
e a anedota que se conta da esposa
a antiga casta susana entre os velhos
os velhinhos entre a vida e a morte
os artistas suburbanos da amadora
antologistas do verso erótico dos amigos
o declamador nortenho de pronúncia ainda lá
três inventores e meio da filosofia nacional
muitos pintores que chateiam as paredes
muitos senhores que teimam tinta e papel

e se houvesse justiça tinham pena capital


(de Cantigas de Amor & Maldizer, 1966)

2.9.18


PAUL ELUARD


A AURORA DISSOLVE OS MONSTROS

Ignoravam
que a beleza do homem é maior do que o homem

Viviam para pensar pensavam para se calarem
Viviam para morrer eram inúteis
Ocultavam a sua inocência na morte

Tinham posto em ordem
sob o nome de riqueza
sua miséria sua bem-amada

Mastigavam flores e sorrisos
Só encontravam um coração na ponta das carabinas

Não percebiam a injúria dos pobres
Dos pobres amanhã sem problemas

Sonhos sem sol tornavam-nos eternos
Mas para que a nuvem se transformasse em lama
Desciam deixavam de fazer frente ao céu

A noite do seu reino a sua morte a sua bela sombra miséria
Miséria para os outros

Esqueceremos estes inimigos indiferentes
Em breve uma multidão
Repetirá baixinho a chama clara
A chama para nós dois unicamente paciência
Para nós dois em toda a parte o beijo dos vivos.


(in Algumas das Palavras, traduções de António Ramos Rosa e Luiza Neto Jorge, Publicações Dom Quixote, 1969 / original de Le lit la table, 1944)