22.6.13

CARLOS POÇAS FALCÃO


COMPOSIÇÃO MEDITATIVA II

Não sou um indignado. Sei que o mundo passa
bem sem mim — o que é justo e me assinala a grande liberdade.
Procuro manter a dignidade, estou a envelhecer e no entanto
pronto a começar. Afinal está provado o sem sabor de tudo
— a não ser daquilo que começa, do que é inicial,
ou seja, desde sempre. Aí regresso a horas repentinas,
muitas vezes entre um desencontro e o café.
Isso é terrível e procuro manter a dignidade.
Foi numa dessas horas que descobri que Deus
não passa bem sem mim — o que não me indigna
e também não me alivia da grande liberdade. Afinal
ser homem para Deus é o sabor inicial.



 

(in "Telhados de Vidro", n.º 18 | Maio 2013)

19.6.13

ARMINDO RODRIGUES


AVE NEGRA

Estou vazio e estou triste. Quantos enlevados propósitos tantas vezes pus na crispação destas mãos arremessadas e na nudez desta voz me parecem hoje inatingíveis.

Sei que outros sonham os mesmos sonhos que eu sonhei. Mas hoje estou vazio e estou triste. Friamente penso, contra esta tristeza e esta vacuidade, que os meus sonhos são exactos, porque os nutre o exacto sangue de uma fatalidade mortal.

Hoje, porém, nem pensar friamente me serve para deixar de sentir-me vazio e triste. A minha raiva é a mesma, sem remédio. O meu desejo de um mundo mais justo e mais claro é o mesmo, trasbordante. Simplesmente, hoje, estou vazio e estou triste.

Uma ave negra tolda-me o espaço e tolhe-me, e o pior é que não caiu de fora sobre mim, mas foi em mim que se levantou, e de mim se levantou, para me toldar o espaço e me tolher, e nem sequer é uma ave de remorsos ou de arrependimento, vergonhosa, que eu, contudo, pudesse matar.

Estou vazio e estou triste. E nem pela análise mais cruel consigo mais que saber porque não é que estou vazio e que estou triste.


(de O Inquieto Repouso, 1973)

17.6.13

JORGE DE LIMA


II

Era um cavalo todo feito em chamas
alastrado de insânias esbraseadas;
pelas tardes sem tempo ele surgia
e lia a mesma página que eu lia.

Depois lambia os signos e assoprava
a luz intermitente, destronada,
então a escuridão cobria o rei
Nabucodonosor que eu ressonhei.

Bem se sabia que ele não sabia
a lembrança do sonho subsistido
e transformado em musas sublevadas.

Bem se sabia: a noite que o cobria
era a insânia do rei já transformado
no cavalo de fogo que o seguia.

III

Qual um fagote inúmero a ave aquática
com uma ostreira de teclas submarinas,
os sons encachoeirados estrugindo
pelos goles das águas empoladas

conclamando os delfins de rosto humano,
cabeleiras de polvos e de fúrias,
com um severo clangor, uma lamúria,
um apelo profundo, tão insano

desse mar que nos mapas não se vê,
abrasado de raios e ardentias,
devorado por duendes que eram seus,

e voz tão rubra de cains oriunda;
que as águas se enrugavam e a ave ia
ia perder-se nos confins do mundo.

IV

Era um cavalo todo feito em lavas
recoberto de brasas e de espinhos.
Pelas tardes amenas ele vinha
e lia o mesmo livro que eu folheava.

Depois lambia a página, e apagava
a memória dos versos mais doridos;
então a escuridão cobria o livro,
e o cavalo de fogo se encantava.

Bem se sabia que ele ainda ardia
na salsugem do livro subsistido
e transformado em vagas sublevadas.

Bem se sabia: o livro que ele lia
era a loucura do homem agoniado
em que o incubo cavalo se nutria.

V

Entre livro e cavalo  o homem instalou
duas escadarias e uma bússola;
depois verificou que sendo duplas
as suas asas dúbias, duplo o vôo.

Pousou na escuridão, e repousou,
pois era o dia sete de seus súcubos.
Foi quando se exclamou: Faça-se a luz.
E a luz dentro das trevas se formou.

Moldoror! Mal-e-horror! ó terra nata,
tão empresa, tão ébria, tão perjura
e sempre, e ao mesmo tempo tão amarga!

Que lume bruxuleia sobre as vagas?
Candelabro ou veleiro ou raio obscuro
que ora sobe na proa ora se apaga?


(do "Canto IV / Aparições" de Invenção de Orfeu, 1952)

16.6.13

D. H. LAWRENCE


ANAXÁGORAS

Quando Anaxágoras afirma: Até a neve é negra!
é tomado muito a sério pelos sábios
pois está a enunciar um «princípio», uma «lei»:
todas as coisas estão misturadas, logo na mais pura neve branca
existe um elemento de negrume.

A isto chamam eles ciência e realidade.
Por mim, chamo-lhe pedantismo mental e mistificação
e coisa absurda pois para nós é branca a neve pura
branca branca e só branca
esplendor belíssimo de brancura no branco
delícia de alma onde os sentidos
conhecem o êxtase.

E a vida é para o êxtase a delícia
o terror e a negra profecia revolta do destino;
depois é a aurora radiosa da delícia renascida
que vem da brancura absoluta da neve ou da lua imóvel.

E na sombra do sol a neve é azul, azul tão sobranceiro
com laivos de campânulas geladas da flor de cila
mas sem sombras nem sinais do luto de Anaxágoras.



(versão de João Almeida Flor, in Gencianas Bávaras e outros poemas, Na Regra do Jogo, 1983)