4.10.03

[outros melros VII]

JUAN RAMÓN JIMENEZ

MELRO FIEL


Quando o melro, no verde novo, um dia
volta, e assobia o seu amor, embriagado,
agitando sua inquietação num fresco de ouro,
abre-nos, negro, com seu bico rubro,
carvão vivificado por sua brasa,
uma alma de valores harmoniosos
maior que todo o nosso ser.

Não cabemos, por ele, plenos, completos,
em nossa fantasia despertada.
(O sol, maior que o sol,
inflama o mar real ou imaginário,
que resplandece entre o frondor azul,
maior que o mar, que o mar.)
As alturas entornam seus últimos tesouros,
preferimos a terra que pisamos,
um momento chegamos,
em vento, em onda, em rocha, em labareda,
ao impossível eterno da vida.

A arquitectura etérea, frente a nós,
Com os quatro elementos surpreendidos,
abre-nos total, una,
com perspectivas imanentes,
a realidade solitária dos sonhos,
suas fascinantes galerias.
A flor eleva-se melhor à nossa boca,
a nuvem é de mulher,
a fruta seio responde-nos sensual.

E o melro canta, foge pelo verde,
e sobe, sai pelo verde, e assobia,
recanta pelo verde onde sopra o vento,
livre na claridade e na pureza,
torneado alegremente pelo ar,
dono completo do seu duplo prazer;
entra, vibra assobiando, fala, ri,
canta... E amplia com seu canto
a hora parada da estação viva
e faz nossa vida suficiente.

Eternidade, hora ampliada,
paraíso de fulgor único, aberto
a todos nós, adultos, pensativos,
por um ser diminuto que se amplia!
Primavera, absoluta Primavera,
quando o melro exemplar, uma manhã,
enlouquece de amor entre a verdura!

(de Antologia Poética, selecção, tradução prólogo e notas de José Bento, Relógio d'Água, 1992 - o original pertence a La estación total, de 1946)

3.10.03

Suportamos o caminho de casa,
as largas travessas até ao
lugar escondido das velhas ruínas.

30.9.03

[outros melros VI]

TED HUGHES

O Melro


Tu eras a carcereira do teu assassino -
o que te tinha aprisionado.
E sendo eu teu enfermeiro e protector
a tua pena era também a minha.

Fizeste de conta que te sentias bem. Enquanto te alimentava,
comias, bebias e engolias
deitando-me olhares sonolentos, como uma criança de peito,
por baixo das tuas pálpebras.

Alimentaste a tua raiva de prisioneira, nas masmorras,
pelo buraco da fechadura -
então, de um salto, como se picada por uma víbora, subiste
de novo a escada de caracol, sem luz.

Rostos de papoilas gigantes flamejaram e chamuscaram
a janela. «Olha!»
Apontaste com o dedo um melro que puxava
uma minhoca de um gargalo de garrafa.

O relvado ali estava, como a página prístina esperando
um relatório de prisão.
Quem o ia escrever e o que diria
foi coisa em que nunca pensei.

Uma criatura muda, enroscando-se à porta da fornalha
sobre as suas forquilhas diabólicas,
era já uma caneta que escrevia
o que está errado é verdade, a verdade é erro.

(de Cartas de Aniversário, tradução de Manuel Dias, Relógio D’Água editores, 2000)
[outros melros V]

já devia ter recomendado há mais tempo o Canto do Melro, um belíssimo, despretencioso blog.

29.9.03

Estou em alta!

1) Os intrusos evocam-me em link como "o rapaz que lia blanc de portugal".
Fico feliz, pois uma das coisas que me enche de mais glória (kabod, não é?), é ter sido amigo de José Blanc de Portugal, grande Homem, grande Poeta, grande tradutor, grande anti-crítico. (em breve porei aqui alguns exemplos da sua genialidade preguiçosa)

2) A Sandra, do Tempo Dual, dá-me o privilégio de ter umas coisas que fiz ao lado dos belíssimos poemas dela.
[convocam-se os GNR para o obituário do dia]

Se o pescado morre ao lado
Se ainda se ama o mar salgado
Então é ver no cinema se ainda há
Lodo no cais

(do álbum Mosquito, 1998)