23.3.18


JOSÉ ALBERTO OLIVEIRA


INDÚSTRIA

Não sei ser útil como a chuva
nas raízes das árvores,
ou o osso que o cão fareja:
já tentei – se tivesse
de dançar como uma abelha,
em frente da colmeia,
de certo erraria os passos
e indicaria um rumo estéril.

O destino, erros na transcrição
de aminoácidos, uma educação
inadvertidamente condenada
ao fracasso? Já tive
momentos de felicidade,
ignorando mãos, gestos,
propósitos, temo que,
um dia destes, a minha
morte não sirva para nada.


(de De Passagem, Assírio & Alvim, 2018)

18.3.18


VITOR SILVA TAVARES


Incensado, esmiuçado, proposto à circulação, Dubuffet está no papo.
A não ser que não esteja. Vejamos como esperneia: «A arte é por essência repreensível e inútil! e anti-social, subversiva, perigosa! E quando não é isto, não passa de moeda falsa, manequim vazio, saco de batatas.»
Ora há coisas que não se dizem. Pior: que não se pensam. Muito pior: que não se fazem. Ao dizê-las, pensá-las, fazê-las Dubuffet conspurca o território sagrado da Arte e da Cultura, hostiliza os grão-sacerdotes, dá provas de uma perigosa heresia libertária. Então a gente aplaude-o e ele recusa-se a ser dos nossos?
Então a gente divulga-o e ele, em troca, ofende-nos? Então a gente compreende-lhe a bizarria de artista e ele, ainda por cima, ridiculariza-nos? Então a gente cumula-o de análises suculentas e lindos adjectivos e ele desautoriza-nos, enxovalha-nos, agride-nos? Pois bem: vamos amá-lo por isso mesmo, vamos ser masoquistas, vamos digerir-lhe, deliciados as irritações, os furores, as apóstofres. Queira ou não queira, nós, a cultura de massas, vamos digeri-lo.
«A cultura tende a tomar o lugar que foi outrora o da religião. Como esta, ela tem agora os seus sacerdotes, os seus profetas, os seus santos, os seus colégios de dignitários: o conquistador que visa a sagração apresenta-se ao povo já não apoiado de um bispo, mas de um prémio Nobel. Agora, é em nome da cultura que se mobilizam e se pregam as cruzadas. É ela agora o ópio do povo.» (Jean Dubuffet).
Como se vê, o artista é mesmo difícil de tragar. Nega a cultura no momento em que ela serve de arrimo a tanta boa gente.
Mas: que cultura?
A «asfixiante cultura».

[…]

Sendo pois contra os museus, contra os mercados das vaidades e dos valores, contra toda a forma de institucionalização das artes, Dubuffet propõe [no livro Asphyxiante Culture (1968)], por isso mesmo, o que afinal vem praticando: para além das noções impostas, uma arte no seu estado bruto, original primitivo, criação simultaneamente individual, pessoal e feita por todos, livre de toda a ganga intelectualista, descondicionada, descomplexada, em revolta permanente, em permanente amour fou. Utopia? Não: recusa do obscurantismo programado pelos clercs da cultura e seus beneficiários. Porque, di-lo Dubuffet, «os homens de cultura estão afastados do artista como o historiador do homem de acção». Ao artista compete pois fazer da sua arte uma contestação vivificante.


(excertos de «Dubuffet: Contra a Cultura», in textinhos, intróitos & etc, Pianola editores, 2017 / original in Diário de Lisboa – Suplemento Literário, 19 de Setembro de 1968.) 




JEAN DUBUFFET
«Borne au Logos V» (1967)
Colecção Berardo, Lisboa, Janeiro de 2018