20.9.03

ÁLVARO DE CAMPOS

Lisbon Revisited (1923)


Não, não quero nada
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafísica!
Não me apregoem sistemas complexos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) -
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica,
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia!

Ó céu azul - o mesmo da minha infância -
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!
PESSOA E AS RÁDIOS PIRATAS - memória de há quinze anos

Quem, como eu, nasceu em 1972, tinha 16 anos quando aconteceu o centenário do nascimento de Fernando Pessoa.
Ora, nada melhor para entediar e provocar a indiferença de um adolescente do que as "Grandiosas comemorações" ocorridas.

Mas outro dos fenómenos de 1988 foi o auge caótico das rádios piratas. E foi de uma delas, que eu ouvia quase religiosamente, que me chegaram vários poemas de Álvaro de Campos, lidos com fervor e um ligeiro eco a dar um tom solene que, apesar da piroseira, foi o que me levou a começar a ler Pessoa.

...isso, e o facto de ter tido um colega de carteira chamado Ricardo Reis.

18.9.03

NELLY SACHS

Vós que nos desertos
buscais veios de água ocultos -
de dorso curvado
escutais à luz nupcial do Sol -
filhos duma nova solidão com Ele -

As vossas pegadas
calcam a saudade
para os mares de sono -
enquanto o vosso corpo
lança a folha escura de flor da sombra
e em terra de novo sagrada
o diálogo que mede o tempo
entre estrela e estrela começa.

(de Poemas de Nelly Sachs, antologia versão portuguesa e introdução de Paulo Quintela, Portugália, 1967)

15.9.03

O Tiago diz coisas que parecem da poetisa anterior:


"O Senhor não nos criou as orelhas para amparar lápis."

14.9.03

ADÉLIA PRADO

Nasceu em Divinópolis, Brasil, em 1935.
Em 2000, a editora Cotovia editou em Portugal o seu primeiro livro, Bagagem.


Com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.


Para comer depois

Na minha cidade, nos domingos de tarde,
as pessoas se põem na sombra com faca e laranjas.
Tomam a fresca e riem do rapaz de bicicleta,
A campainha desatada, o aro enfeitado de laranjas:
'Eh bobagem!'
Daqui a muito progresso tecno-ilógico,
quando for impossível detectar o domingo
pelo sumo das laranjas no ar e bicicletas,
em meu país de memória e sentimento,
basta fechar os olhos:
é domingo, é domingo, é domingo.

(de Bagagem, 1976)


Morte morreu

Quando o ano acinzenta-se em agosto
e chove sobre árvores
que mesmo antes das chuvas já reverdeceram,
da mesma estação levantam-se
nossos mortos queridos
e os passarinhos que ainda vão nascer.
"Ó morte, onde está tua vitória"?
Eh tempo bom, diz meu pai.
A mãe acalma-se,
tomam-se as providências sensatas.
Todos pra janela, espiar as goteiras:
"Chuva choveu, goteira pingou
pergunta o papudo se o papo molhou".
Pergunta a menina se a vida acabou.

(de Pelicano, 1987)


De amor

Assim que se é posto à prova,
na cinza do óbvio, quando
atrás de um caminhão vazando
o homem que pediu sua mão
informa:
'está transportando líquido'.
Podes virar santa se, em silêncio,
Pões de modo gentil a mão no joelho dele
Ou a rainha do inferno se invectivas:
Claro, se está pingando,
Querias que transportasse o quê?
Amar é sofrimento de decantação,
Produz ouro em pepitas,
Elixires de longa vida,
Nasce de seu acre
A árvore da juventude perpétua.
É como cuidar de um jardim,
quase imoral deleitar-se
com cheiro forte do esterco,
um cheiro ruim meio bom,
como disse o menino
quanto a porquinhos no chiqueiro.
É mais que violento o amor.

(de Oráculos de Maio, 1999)

[poemas retirados de Poesia Reunida, 10ª ed: editora Siciliano, São Paulo, 2001]
N' A Esquina do Rio evoca-se um pormenor que me fascinou na infância: too loora rai-hei.