10.5.12

ALBERTO PIMENTEL / JOSÉ DANIEL RODRIGUES DA COSTA



BALÃO (O) aos habitantes da lua. Poema, heroi-comico em hum só canto. Por José Daniel Rodrigues da Costa. Lisboa, na Impressão Régia. Ano 1819.
Compõe-se de um prólogo em verso decassílabo pareado e de 80 estâncias.
O assunto é a viagem de um aeronauta à lua e a descrição dos usos e costumes estabelecidos entre os habitantes daquele planeta.
A graça do poema — e alguma tem realmente — está  em passar-se na lua justamente o contrário do que se passa na terra. Por exemplo:
Temos quem nos governe com respeito,
Com justas Leis, que sobre nós imparão,
Tudo, quanto se manda, he logo feito,
Porque as Leis do paiz nunca se altérao.
Este mundo he da Lua, e mui perfeito,
Onde os raios do Sol mais reverbérão;
E por nosso brasão nos nossos planos,
Chamão-se a estes Povos os Lulanos.
O nosso Herói, que ao longe descobria
A Praça, que servia de Ribeira,
Lhe perguntou se sempre se comia
Peixe fresco da mão da vendedeira?
Disserão-lhe que sim, porque ha vigia,
Que manda o peixe podre á montureira;
Que o dono soffre á força esta diffcrença;
Mas que o Povo não compra uma doença;
Que nos açougues ha igual revista,
Nas tendas, padarias, e nas fructas,
Que estas em sendo verdes, mesmo á vista
De seus donos se pizão sem disputas;
Ninguém com estas cousas se malquista,
Que ha para as regular certas minutas,
Que assim a gente vive satisfeita,
Porque quanto se compra, se aproveita.
José Daniel foi, como se sabe, um gracejador popular e não um escritor ilustrado; mas na sua graça há observação e, por isso, uma eterna oportunidade.
Do Balão fez-se uma edição no Brasil em 1821.

(in Poemas Herói-Cómicos Portugueses (verbetes e apostilhas), editores Renascença Portuguesa / Annuario do Brasil, 1922)

9.5.12

ANTÓNIO DACOSTA


Está calor em Évora, 1983
acrílico sobre tela
146 x 114 cm


ARTUR GOULART


Pequena serenata eborense para Dacosta
(em três andamentos)

I

Chegou notícia da tua morte.
Morte aparente a tua, António,
fingida sem fingimento,
que de verdade se faz a tua estrada,
ausente, mas presente
como há muito tempo
em Paris, em Évora ou onde te escondes,
longe da ilha, mas na ilha sempre.


II - Uma romana em Évora

Lento se arrasta o espectro da cidade
- Liberalitas Julia dizem -
Caem encantados os últimos sons da tarde
Dorido corre o sonho feito grito e cor.
Romana em Évora branca compostura
Parede-pano-planície lavada em sol
Inviolado passado marítima candura.


III - Está calor em Évora!

Gémeas esperanças de branco e de ternura
no apetecível espelho sobrevive
longa trança de azulejos.

Está calor em Évora!

Sente-se o sol redondo absoluto
no dourado recinto esvoaçam
incontidos os desejos.

Está calor em Évora!

Arde violenta a pedra
a sombra entorpece sonolenta o cio
da terra em fresco desabafo
apenas as fontes e as palavras...

Está calor em Évora!

Dezembro 1990

(de No fio das palavras, Santa Casa da Misericórdia da Vila das Velas, 2010)



8.5.12

ANTÓNIO CUNHA RIBEIRO


ALGURES, NO MUNDO

Veio-nos o exílio 
roubar a terra 
onde nascemos 
e sonhámos morrer.

Tomámos um bote
um par de remos
(nem uma bússola ao menos
imaginem)
e fugimos
por entre búzios e balas.

Estamos aqui 
algures 
no mundo.

Escreva-nos  quem quiser 
ou quem puder.

(de Rapaz com um Búzio, colecção Gávea/Glaceal, 1971)

7.5.12


ANA PAULA INÁCIO


como se o vento trouxesse
recados
que pudesse abandonar
ao serviço do mensageiro

como se o vento te pudesse
levar e as palavras transformar
no milagre da cerejeira

não descuides o vento
que quem uiva
é lobo faminto

rodeia-te antes do essencial
faz-te cozinheira, semeia o teu quintal

o que por natureza rola
há-de rolar
e tu sozinha
o que podes contra o vento?


(de Vago pressentimento azul por cima, ILHAS, 2000)

6.5.12

RITA TABORDA DUARTE


TORNAR-SE O SER CRIADO EM CRIADOR

A Francesco Petrarca
Justo é saber que cada um já    retomou
A falsa-humilde condição de um servidor
E por fim finja não ser ele o criador
De quem afinal fingimos      que nos criou

Porque alguém que escreve é também alguém que é lido
Por um outro alguém que se lê           como num espelho,
À certeza inquieta do gesto     devolvido.

É ténue a linha entre a verdade e a aparência :
E se o estilo é doce é menos novo do que é velho,
Que só pel' efémero se sustenta a permanência.

Nem se sabe por que medida se mede o homem
Sequer de quem nos recebemos por herança
Mais: talvez só    sejamos sombra    à semelhança
Das demais fábulas absurdas que nos consomem


(de Na Estranha Casa de Um Outro [Esboço de uma biografia poética], edições Asa, 2005 - colecção pequeno formato)