27.12.08

ANA HATHERLY


HISTÓRIA DA MENINA LOUCA


Procuraram toda a casa, toda a terra,
Ninguém a achava.
Ela estava no telhado atrás da chaminé,
Olhava as estrelas e cantava.
Estava tão feliz e sossegada!
Olhava as estrelas e cantava.

Meu Deus, está louca!
Vamos levá-la.

Estava tão feliz!
Olhava as estrelas e cantava...

***

Dai-me, Senhor, um limite para a ambição,
Que a desmedida é grande impiedade!

Não se saber aonde se acaba
E até onde podemos nós sonhar...
Que, mesmo no sonho,
Eu quero me encontrar.

Se assim não fora,
Não poderia
Crer e amar.

***

A minha vida é poética:
Paira entre a vaga mentira e a realidade.

O amor me acontece
Como as folhas às árvores,
E tão singularmente,
Que já nem sei se é natural à árvore ter folhas
Ou estar nua...

(de Um Ritmo Perdido, edição da Autora, 1958)


O SEXTO SENTIDO

Estamos aqui
Em estado de liberdade
Condicionada pela enorme filáucia do próximo
Que um poeta desconhecido confirmou
Quando disse:
O sexo existe
Vem da palavra six
Igual a sexto sentido
Que é feminino

E acrescentou:
A maçã
É para ser comida

(de A Neo-Penélope, &etc, 2007)
50 Anos.



[especialmente a pensar neste blogue]

GEORGE STEINER

(…)
A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da cafetaria preferida de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos gangsters de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo. Não há cafés antigos ou definidores em Moscovo, que é já um subúrbio da Ásia. Poucos em Inglaterra, após um breve período em que estiveram na moda, no século XVIII. Nenhuns na América do Norte, para lá do posto avançado galicano de Nova Orleães. Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter-se-á um dos marcadores essenciais da «ideia de Europa».
O café é um local de entrevistas e conspirações, de debates intelectuais e mexericos, para o flâneur e o poeta ou metafísico debruçado sobre o bloco de apontamentos. Aberto a todos, é todavia um clube, uma franco-maçonaria de reconhecimento político ou artístico-literário e presença programática. Uma chávena de café, um copo de vinho, um chá com rum assegura um local onde trabalhar, sonhar, jogar xadrez ou simplesmente permanecer aquecido durante todo o dia. É o clube dos espirituosos e a posterestante dos sem-abrigo. Na Milão de Stendhal, na Veneza de Casanova, na Paris de Baudelaire, o café albergava o que existia de oposição política, de liberalismo clandestino. Três cafés principais da Viena imperial e entre as guerras forneceram a agora, o locus da eloquência e da rivalidade, a escolas adversárias de estética e economia política, de psicanálise e filosofia. Quem desejasse conhecer Freud ou Karl Kraus, Musil ou Carnap, sabia precisamente em que café procurar, a que Stammtisch tomar lugar. Danton e Robespierre encontraram-se uma última vez no Procope. Quando as luzes se apagaram na Europa, em Agosto de 1914, Jaurès foi assassinado num café. Num café de Genebra, Lenine escreveu o seu tratado sobre empiriocriticismo e jogou xadrez com Trotsky.
Note-se as diferenças ontológicas. Um pub inglês e um bar irlandês têm a sua própria aura e mitologias. O que seria da literatura irlandesa sem os bares de Dublin? Onde, a não existir o Museum Tavern, teria o Dr. Watson encontrado Sherlock Holmes? Mas estes estabelecimentos não são cafés. Não têm mesas de xadrez, não há jornais à disposição dos clientes, nos seus suportes próprios. Só muito recentemente o próprio café se tornou hábito público na Grã-Bretanha, e mantém o seu halo italiano. O bar americano desempenha um papel vital na literatura americana e em Eros, no carisma icónico de Scott Fitzgerald e Humphrey Bogart. A história do jazz é inseparável dele. Mas o bar americano é um santuário de luzes desmaiadas, muitas vezes de escuridão. Vibra com música, muitas vezes ensurdecedora. A sua sociologia e o seu tecido psicológico são permeados pela sexualidade, pela presença – desejada, sonhada ou real – de mulheres. Ninguém redige tomos fenomenológicos à mesa de um bar americano (cf. Sartre). As bebidas têm de ser renovadas, se o cliente quiser continuar a ser desejado. Há «seguranças» que expulsam os indesejáveis. Cada uma destas características define uma ética radicalmente diferente daquela do Café Central ou do Deux Magots ou do Florian. «Haverá mitologia enquanto existirem pedintes», declarou Walter Benjamin, um connaisseur apaixonado e peregrino de cafés. Enquanto existirem cafetarias, a «ideia de Europa» terá conteúdo.
(…)

(excerto de A Ideia de Europa, tradução de Maria de Fátima St. Aubyn, Gradiva, 2005)

26.12.08

HAROLD PINTER

Natal


Escolhe o aperitivo do bebé para tomar
Numa corneta acústica.
A privação enfurece: pelo menos
Alegra-te com o teu cativeiro.

Dá limões ao Maurice.
Partiu a louça,
Feito parvo no sótão,
Empanturrando-se de biscoitos e azeitonas.

Esta é uma família feliz.
Vem, canta o porto,
Ea as noites enfardando caldeirada,
Vamos infiltrar-nos na casa ao lado,
Fazer outra festa.

1950


Tudo isso

Tudo isso fiz
E, ao fazer, menti.
E tudo isso que escondi
Fingi estar morto.

Mas tudo isso que escondi
Foi sempre dito,
Mas, escondido, espiava
O bem de outrem.

E tudo isso levei
À certa para a cama
E, na cama, disse
Aquilo que fiz

A tudo isso que chorava
Por trás da minha cabeça
E, ao chorar, morria
E não morreu.

1970

(tradução de Jorge Silva Melo e Francisco Frazão, in Várias Vozes, edições Quasi, 2006)

25.12.08

MÁRIO GARCIA, S. J.

Hino das Matinas do Natal


Traz
a sentinela,
à raiz do vento,
a gruta.

A ave, a neve,
dilata a madrugada.

A luz
difunde
a palma.

O odor do pinheiro
entra na água,
impregna o ar.

Dentro da nuvem, a pomba.

O ovo da criação,
a semente,
nasce.

O fogo
clama
o coração.

A nova eternidade
começa no poema,
por um sinal de amor.



Hino das Segundas Vésperas de Natal

Menino
quase sozinho
no seio da Virgem Mãe,
dá-me
teu sorriso
palhinha do nada.

Traz
numa carícia agora
o luar,
a mão divina
sentinela luz
da noite.

Para ti
nossa canção
se evola,
nostálgica palavra
lentamente sendo
vida.

Flor de cinza
o nosso coração
alado,
ao teu presépio
na raiz do vento
voa.

Deus
à madrugada
leva o berço,
silêncio
em que se aninha o dia.

Estrela do céu
a lágrima do mundo
abrasa em nós,
mar
do infinito
amor.

(de Roma, Vieira, Veneza, Autores de Braga, 1998)

24.12.08

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

Nascemos, nascemos, nascemos



Enganam-se os que pensam que só nascemos uma vez.

Para quem quiser ver a vida está cheia de nascimentos.

Nascemos muitas vezes ao longo da infância
quando os olhos se abrem em espanto e alegria.

Nascemos nas viagens sem mapa que a juventude arrisca.

Nascemos na sementeira da vida adulta,
entre invernos e primaveras maturando
a misteriosa transformação que coloca na haste a flor
e dentro da flor o perfume do fruto.

Nascemos muitas vezes naquela idade
onde os trabalhos não cessam, mas reconciliam-se
com laços interiores e caminhos adiados.


Enganam-se os que pensam que só nascemos uma vez.


Nascemos quando nos descobrimos amados e capazes de amar.

Nascemos no entusiasmo do riso e na noite de algumas lágrimas.

Nascemos na prece e no dom.

Nascemos no perdão e no confronto.

Nascemos em silêncio ou iluminados por uma palavra.

Nascemos na tarefa e na partilha.

Nascemos nos gestos ou para lá dos gestos.

Nascemos dentro de nós e no coração de Deus.


O que Jesus nos diz é: "Também tu podes nascer",
pois nós nascemos, nascemos, nascemos.


(in boletim da Agência Ecclesia, 23/12/2008)
[muita pressa e pouco amor]

VITORINO NEMÉSIO

NATAL CHIQUE


Percorro o dia, que esmorece
Nas ruas cheias de rumor;
Na minha alma vã desaparece
Na muita pressa e pouco amor.

Hoje é Natal. Comprei um anjo,
Dos que anunciam no jornal;
Mas houve um etéreo desarranjo
E o efeito em casa caiu mal

Valeu-me um príncipe esfarrapado
A quem dão coroas no meio disto,
Um moço doente, desanimado…
Só esse pobre me pareceu Cristo.

(de O Pão e a Culpa, 1955)

23.12.08

JOSÉ AUGUSTO MOURÃO

Salmo de advento



rasgue-se o céu, o teu olhar nos cubra
rodem os portais esquecidos e as sebes

secaram de excessivas as fontes do silêncio
só o desejo sai ao mar com algum lume a bordo,

a mais estão as luzes alcandoradas
se para apagar as brasas deste chão se arvoram.

desçam os teus barcos os rios do amargor
cegam-nos de evidência pântanos e vórtices

exorcizemos a impostura da língua
e as palavras amestradas que não andam.

dá-nos o dom do seminal, não do sacrifício
que até os deuses compra e a nós desculpa,

baste à vida como cais o limiar
e a intensidade dos afectos que responda à Voz

altere-nos o largo do dom e da misericórdia
que o rocio da noite que é a esperança nos afague.

rasgue-se o tempo e o teu dom nos ritme
na dobra do Evangelho vigiamos: vem!.

daremos a esta hora o nome: Expectação
e a noite e o sal em comum partilharemos.

a sentinela que precede a luz e a epifania
nos disponha a viver na noite vendo o dia.

fique-nos da tua passagem o traço e a cinza
e a crença de que o vazio é prenhe e habitado.

de apurar o ouvido e os afectos
se pressente a nascente só da fé sabida

se perdemos a memória das feridas
como aguardaremos a face da justiça que caminha?

confirme o teu Anjo os vestígios
de mundos que os batedores do sopro prenunciam,

que a flor da amendoeira aqueça esta vigília
e preludie o fim do inverno e a crueldade,

entremos no Jardim como num barco
hão-de levar ao Rosto os poços visitados.

(de Declinações o Nome e a forma, DL n.º 205863/04, 2004)



[a propósito, ver também este post de José Leitão]

22.12.08

ARTUR PORTELA

25


Desmoronavam-se e choravam gente.
Caíam-lhes, dos agora muitos olhos que tinham, muitas pessoas.
Lentamente se despenhavam de todos aqueles olhos que eram de vidro partido mais pessoas do que todas quantas ele jamais vira.
Achou-se a cair com elas, a cair entre elas.
Sendo imensa, embora mansa e vagarosa, quase meticulosa, a tristeza de todos.
Uma tristeza feita de espanto, desconcerto e desilusão.
Angústia era a sua por os ver assim.
Enquanto lentamente caíam.
Contavam, enquanto caíam, uns aos outros, quem eram, o que faziam, o que fariam essa mesma tarde se não fossem morrer dali a nada, e o que fariam naquele ano.
Os que estavam caindo em seu redor espantaram-se de o ver ali, e assim, naquele propósito de queda, levando um chapéu, que não era uso.
E não seria, sentiu ele, só isso, porque todos o olhavam de uma forma assim a modos que culpabilizadora, mas contida.
Além de que tinham de cuidadosamente cair, para não chocarem uns com os outros, e assim inutilmente se magoarem antes de morrer.
E, sempre a cair, mútua e muito polidamente se ajudavam, caia por aí que eu caio por aqui, cuidado que vem mesmo este senhor a cair sobre si, com licença, muito obrigado.
Ele só pensava numa coisa: a fome, que não me matou até hoje, sobreviver-me-á?

(de A ração do céu, editorial Notícias, 2001 – Outras Narrativas)

21.12.08

PEDRO GIL-PEDRO

Rodam devagar as pás do silêncio
como delas manasse um abismo suado,

mas sobre a matriz da neve pendem os bordões do fogo.

de longe veio o declínio da esteva – um círculo fechado
por enigmas.

em breve

haverá um halo de germinação nos açudes e
exausta a poda um arado de novo em desvario.

diante do inverno

movem-se ainda as pás da agonia
apesar dos setenta selos pregados ao sono.

(de animais cheios de movimento no inverno, Quasi edições, 2002 - Uma existência de papel)