23.12.08

JOSÉ AUGUSTO MOURÃO

Salmo de advento



rasgue-se o céu, o teu olhar nos cubra
rodem os portais esquecidos e as sebes

secaram de excessivas as fontes do silêncio
só o desejo sai ao mar com algum lume a bordo,

a mais estão as luzes alcandoradas
se para apagar as brasas deste chão se arvoram.

desçam os teus barcos os rios do amargor
cegam-nos de evidência pântanos e vórtices

exorcizemos a impostura da língua
e as palavras amestradas que não andam.

dá-nos o dom do seminal, não do sacrifício
que até os deuses compra e a nós desculpa,

baste à vida como cais o limiar
e a intensidade dos afectos que responda à Voz

altere-nos o largo do dom e da misericórdia
que o rocio da noite que é a esperança nos afague.

rasgue-se o tempo e o teu dom nos ritme
na dobra do Evangelho vigiamos: vem!.

daremos a esta hora o nome: Expectação
e a noite e o sal em comum partilharemos.

a sentinela que precede a luz e a epifania
nos disponha a viver na noite vendo o dia.

fique-nos da tua passagem o traço e a cinza
e a crença de que o vazio é prenhe e habitado.

de apurar o ouvido e os afectos
se pressente a nascente só da fé sabida

se perdemos a memória das feridas
como aguardaremos a face da justiça que caminha?

confirme o teu Anjo os vestígios
de mundos que os batedores do sopro prenunciam,

que a flor da amendoeira aqueça esta vigília
e preludie o fim do inverno e a crueldade,

entremos no Jardim como num barco
hão-de levar ao Rosto os poços visitados.

(de Declinações o Nome e a forma, DL n.º 205863/04, 2004)



[a propósito, ver também este post de José Leitão]

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