28.8.03

Poema quase incompleto

Poema quase incompleto

os aquedutos extravasam dentro
das cidades iluminadas por
ÁNGEL CRESPO

Nasceu em 1926, em Ciudad Real, Espanha.
Autor de uma importante obra poética, publicada ao longo de mais de quarenta anos, traduziu rigorosamente para o castelhano grandes nomes da literatura mundial, incluindo alguns lusófonos, como Pessoa ou Guimarães Rosa. Foi também crítico e director de revistas literárias, além de Professor de Literatura Comparada em diversas universidades.
Morreu em 1995, em Barcelona.


NOCTURNO

La rosa, como un jarro de agua fresca en lo oscuro,
lo mismo que una música que ardía y se ha cerrado,
puede huir de la mano que sin querer se acerca
y anidar en el hueco que un suspiro le cava:
la rosa, que conoce el vuelo del olvido
apenas a unas plumas las alas se insinúan;
la rosa, única y todas, diamante e instrumento:
no el lirio, experto en todas las traiciones florales.


(de Délficas, in Iniciación a la sombra, Hiperión, 1996)


NOCTURNO

A rosa, como um jarro de água fresca no oculto,
igual a uma música ardendo que se fechou,
pode escapar-se da mão que sem querer se aproxima
e aninhar-se no vazio que um suspiro lhe cava:
a rosa, que sabe o voo do esquecimento
somente a umas penas as asas se insinuam;
a rosa, única e todas, diamante e instrumento:
não o lírio, sabedor de todas as traições florais.

(tradução minha)

26.8.03

[estive dois dias à procura deste soneto que me ocorreu no Caminho]

DANTE ALIGHIERI

(...) Foi quando, tendo-se eles [os peregrinos] afastado da minha vista, me propus fazer um soneto em que me manifestara o que comigo dizia; e a fim que parecesse mais piedoso, me propus de dizer como se a eles tivesse falado; e disse este soneto que começa: Pregrinos pensativos que passais. E disse "peregrinos" segundo a larga significação do vocábulo; que peregrinos se podem de dous modos entender, um largo e um estreito: o largo, quando é peregrino quem fora de sua pátria esteja; no estreito, não se entende peregrino se não quem vai a casa de Santiago ou dela volve. E é de saber que por três modos propriamente se chamam as pessoas que vão em serviço do Altíssimo: chamam-se palmeiros, quando vão a ultramar, de onde muitas vezes trazem a palma; chamam-se peregrinos, quando vão à casa de Galiza, por ter sido a sepultura de Santiago mais longe de sua pátria do que qualquer dos mais apóstolos; chamam-se romeiros, quando a Roma vão que era onde iam estes que eu chamo peregrinos.
Este soneto não dividirei, sendo assaz manifesta sua razão.

Pregrinos pensativos que passais,
talvez cuidando em coisa não presente,
vindes assim de tão remota gente
como à primeira vista aparentais,

que sem chorar agora atravessais
o centro da cidade tão dolente,
como aquelas pessoas cuja mente
ignora a gravidade de horas tais?

Se quedásseis a ouvi-lo, o coração
por certo suspirando bem me diz
que em lágrimas havíeis de ficar.

Ela perdeu a sua Beatriz,
sobre quem as palavras têm condão
de pôr todos os outros a chorar.

(do capítulo XL de Vita Nuova - tradução de Vasco Graça Moura, Bertrand, 1995)

25.8.03

HAROLDO DE CAMPOS

Nasceu em 1929, em São Paulo, Brasil.
Foi um dos teóricos do movimento concretista do Brasil, que tantas influências iria gerar a nível mundial, sobretudo através do Grupo Noigandres que fundou com seu irmão Augusto de Campos e com Décio Pignatari. Tradutor, entre outros, de James Joyce e de Ezra Pound, foi também ensaísta.
Publicou mais de 30 livros, ao longo de mais de 50 anos de escrita, mas é difícil encontrar obras suas em Portugal.
Morreu no dia 16 deste mês.

Sonêto de Bodas

Luar de cópas e marfins renhidos
Tua nudez a riste contra o mar.
Violetas roucas sôbre os teus soluços.
E rosas tênues e papoulas de ar.

Um novo deus conjura os vaticínios,
E eu sorvo o mês, em taças contra o mar,
Tua nudez orçada em meus espelhos,
E rosas tênues e papoulas de ar.

Quem te ensinara o diapasão das noivas
embevecido em lírios de ninar?
Ó Bem-Amada, quem te apascentara

Nos mansos trigos dêsse apascentar?
Plumas de outono para as tuas bôdas
Que desfloresces nos porões do mar.

(de Auto do Possesso, 1950 - in A Nova Poesia Brasileira, Escritório de Propaganda e Expansão do Brasil em Lisboa, 1960)


de sol a sol
soldado
de sal a sal
salgado
de sova a sova
sovado
de suco a suco
sugado
de sono a sono
sonado

sangrado
de sangue a sangue

(poema publicado originalmente em 1962 e reproduzido in Antologia da Novíssima Poesia Brasileira - selecção e notas de Gramiro de Matos e Manuel de Seabra, livros Horizonte)


Transideração
Ungaretti Conversa com Leopardi


Um leão: ruivando arde -
na voz do leão - Leopardi
(céu noturno em Recanati)
virando constelação:
Odi, Melisso... E o leão
resgata a um fausto de estrelas
caídas, a lua jamais cadente
e a Ursa, magas centelhas.
Depois, o leão (a Leopardi
tendo dado o que lhe cabe)
passa a medir o infinito
ou desmedi-lo: ao longe
daquela estrela (tão longe)
ao longe daquela estrela.


Nosferatu: Nós / Torquato

Putresco

Putresco

Putresco

torquato: teus últimos dias de paupéria me

vermicegos enrolam a substância da treva
vampiros cefalâmpados
(disse)

mas agora put
resco
put
(horresco
referens)
resco
sco
sc
o

(estes dois últimos foram copiados de uma página da internet, onde não se faz referência da origem ou da data)
[ontem, no Museu Nacional Soares dos Reis, no Porto pude constatar como um simples busto de gesso pode transmitir o espírito sofrido de uma obra inteira. Refiro-me ao busto de Ruben A. pelo escultor Salvador Barata Feyo]

RUBEN A.

Nasceu em Lisboa em 1920.
Licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas, foi: professor do ensino secundário; leitor em King's College, Universidade de Londres; funcionário da Embaixada do Brasil; Administrador da Imprensa Nacional-Casa da Moeda; Director-Geral dos Assuntos Culturais do Ministério da Educação e Cultura, depois do 25 de Abril.
Foi ainda ficcionista, dramaturgo, historiador, crítico literário e divulgador cultural.
Morreu em Londres, em 1975.

(...)
Eu preocupei-me sempre comigo, essa é a principal razão da minha existência. Fui assim e pelos anos que me restam tenho cá ainda muito material para trabalhar. Não ofendo ninguém com esta maneira de ser; deixo mesmo a outros mais matéria para se espraiarem, não meto o bedelho na vida alheia - e isto dói àqueles que desde o pequeno-almoço se preocupam com o que os outros fazem. Eu só me preocupo comigo, o resto é uma paisagem humana com altos e baixos, rios e desertos, lagos e oceanos. O que me interessa sou eu, ver cá para dentro e debruçar-me no poço fundo. Ao começo não se enxerga quase nada, daí a pouco os olhos ficam mais habituados e as formas a desenhar-se; aparecem limos, umas flores nascem dos sítios mais ingratos, o reflexo sobe e desce, a atmosfera ilumina-se de uma luz muito especial que os nossos olhos atiram por aquele mundão abaixo. Pois esse poço não tem fundo; por mais que eu lhe beba os ingredientes não consigo secá-lo. Surge sempre matéria inesperada, que nasce de geração espontânea; das paredes do poço coisas novas ressumam que se vão precipitando na fundura.
Posso dizer, pela experiência que tenho tido, que viver assim debruçado cá para dentro é apaixonante. Mundo que não conhece maldades, não se perverte de encontro a outros, que se deslumbra ao registar vários eus transitando em várias épocas e enriquecendo a estrutura de um eu que vai progredindo, incólume, exacto, fio de navalha na sua própria alma.
(...)

(do prólogo a O Mundo à Minha Procura, 2ª ed: Assírio & Alvim, 1992 - 1ª ed: 1966)
No fim de uma das jornadas do Caminho de Santiago vi que me tinham enviado um SMS a dizer que tinha morrido Sérgio Vieira de Mello.
Duas coisas me ocorreram:
a maneira como um amigo meu timorense se referia a ele apenas como "o Sérgio", ainda antes de o conhecer pessoalmente;
o comentário de um brasileiro que conheci no albergue da juventude de Madrid: "deve ser a única pessoa que dá ao mundo uma imagem civilizada do nosso país".
Isso, e o facto, já referido por muitos, de a sua imagem e postura, naturalmente, transmitirem serenidade, confiança e alegria.