14.5.11

JEAN ROCHER


b) Leitura horizontal.

[…]

Um vocábulo pode desaparecer num momento dado, definitivamente (fome, depois de Nicolau Tolentino de Almeida; leito, depois de Antó­nio Nobre; mágoa, depois de Guerra Junqueiro; mal, depois de Bocage; pé, depois de Cesário Verde), ou provisoriamente, para reaparecer em seguida. Vamos indicar o vocábulo, o nome do poeta depois do qual ele desaparece e enfim, o nome do poeta a partir do qual ele reaparece: boca: Camões - António Nobre; braço: Rodrigues Lobo - João de Deus; campo: Manuel de Melo - Cesário Verde; carne: Camões - António Nobre; corpo: Correia Garção - Camilo Pessanha; lágrima: Camões - Garrett... Porquê este eclipse? Outros textos não conteriam estas palavras? Não as teriam utilizado outros poetas neste lapso de tempo? Enfim, uma palavra pode aparecer mais tardiamente do que se teria pensado: ânsia, a partir de António Nobre; árvore, a partir de Gomes Leal; astro, a partir de Antero de Quental; aurora, a partir de João de Deus; aventura, a partir de Teixeira de Pascoais; beijo, a partir de Guerra Junqueiro; cidade, a partir de Gomes Leal; criado, a partir de António Nobre; encanto e espaço, a partir de João de Deus; espelho, a partir de Gomes Leal; fumo, a partir de Teixeira de Pascoais; hora, a partir de Nicolau Tolentino de Almeida; idade, a partir de Teixeira de Pascoais; lar, a partir de Gomes Leal; lua, a partir de Garrett; menino, a partir de Guerra Junqueiro; mulher, a partir de João de Deus; ninho, a partir de Gomes Leal; olhar, a partir de Antero de Quental; pecado, a partir de João de Deus; punhal e quarto, a partir de Gomes Leal; seio, solidão e tris­teza, a partir de Antero de Quental; sonho, que nunca mais tinha sido reempregado depois de Camões, reaparece em Gomes Leal, como saudade que encontramos somente em Camões e Nicolau Tolentino de Almeida, mas que começa então uma nova carreira ... Talvez seja preciso rever muitas ideias recebidas. Em 26 listas, somente 7 contêm saudade, 6 fado, 7 pranto, 8 lágrima, que só reaparece com o Romantismo... Estas listas não encerram evidentemente senão uma espécie de amostra, mas é um sinal a fixar; e um estudo dos temas por um lado e das palavras prefe­renciais por outro, mostrará que a poesia portuguesa é certamente menos fatalista e menos dolente do que a representam geralmente.

(excerto da Introdução a Sobre o Vocabulário da Poesia Portuguesa, Fundação Calouste Gulbenkian / Centro Cultural Português (Paris), 1975)

13.5.11

JOSÉ AUGUSTO MOURÃO


o anjo e o vitral


venha o teu anjo
que nos trespasse a alma
de palavras novas

venha o teu anjo
como raio que atravessa o vitral
e não o quebra
e o transfigura

venha o teu anjo
extirpar do corpo
o demónio da surdez e do mutismo
que não guarda a alma
nem o seu jardim canoro

não se tornem as palavras que dizemos
lama ou sapos,
mas evangelho,
alegria do mundo

venha o teu anjo
mostrar o túmulo vazio
de onde o Logos corre
e de onde outros corpos sacramentais
se formam

que do interminável léxico das coisas
a nossa voz te diga
e o nosso corpo te bendiga,
pela hora que passa
e o rosto acreditado


(de dizer DEUS ao (des)abrigo do Nome, Difusora Bíblica, 1991)