10.1.04

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Conselhos a um jovem poeta


1. Só escreva quando de todo não puder deixar de fazê-lo. E sempre se pode deixar.
2. Não acredite em originalidade, é claro. Mas não vá acreditar tampouco na banalidade, que é a originalidade de todo mundo.
3. Leia muito e esqueça o mais que puder.
4. Não fique baboso se lhe disserem que seu livro novo é melhor do que o anterior. Quer dizer que o anterior não era bom.
5. Não tire cópias de suas cartas, pensando no futuro. O fogo, a umidade e as traças podem inutilizar sua cautela. É mais simples confiar na falta de método desses três críticos literários.
6. Evite disputar prêmios literários. O pior que pode acontecer é você ganhá-los, conferidos por juízes que o seu senso crítico jamais premiaria.
7. Procure ser justo com os outros; se for muito difícil, bondoso; na pior eventualidade, omisso.

(citado no número 4 da colecção Poetas Modernos do Brasil, de Silvano Santiago, editora Vozes Ltda, Petrópolis, 1976 - sem indicação da origem)

9.1.04

a tua respiração tem um silêncio demorado,
é rouca;
frágil de mais para um dia poder parar.
Fala-se por aí de milagres, a propósito da utilização do termo em actos jornalísticos.
[Acho ridícula a mania (contrária ao rigor apregoado...) de os jornalistas usarem indiscriminadamente este tipo de metáforas, tal como acho ridículos os excessivos adjectivos.]

Desconfio sistemática e prudentemente de tudo aquilo a que se possa chamar milagre. Mas acredito sem limites que a Deus tudo é possível.

Tenho-me como fazendo parte daqueles "felizes que não viram e acreditaram" (cf. Jo 20, 29) e vou pedindo ao Senhor que me livre de ser algum dos que são infelizes por não saberem muito bem o que viram.
JOÃO LIMA PINHARANDA

pequeno corpo de poemas religiosos


1.
no templo,
de joelhos.

de pé,
no templo.
lx,28nov97

2.
tomas no punho
o deus feliz.
e ele toma o brilho lustral
da sua natureza.
lx,28nov97

3.
afinal,
também se reza o terço
todos os dias
- e não se perde a fé.
lx,3dez97

4.
contas do meu rosário
que afago nos dedos
sem rezar.
lx,3dez97

5.
as posições
de adoração
surgem no momento
de adorar.
lx,8dez97

6.
este é o meu corpo.
este é o meu sangue.
lx,8dez97

7.
fechadura
onde não vês.
oratório
onde não falas.
lx,17dez97

8.
mesa de altar
- sobre ela me debruço.
lx,18dez97

9.
o santo de pé,
no nicho,
vela
por ti.
(por milagre chora)
o santo de joelhos,
no nicho,
vela
até ao fim.
lx,22mar98

10.
oração do trovador:
alivia-me esta dor,
liberta-me desta prisão,
minha senhor.
lx,1abr98

11.
três religiões:
vesti a túnica inconsútil.
segurei a palma na minha mão.
aspergi o portal com meu próprio sangue.
lx,8abr98

12.
dois milagres:
milagre do pão multiplicado.
milagre das rosas.
lx,20abr98

13.
invocações:
senhora da luz.
senhora do leite.
senhora do monte.
senhora dos matos.
senhora das águas.
.....................
lx,mai98

14.
vieira
bordão
estrela
- caminhos de santiago.
lx,5jun98

15.
"faça-se em mim
segundo a tua palavra"
lx,19dez99

16.
"e eu te cobrirei
com a minha sombra"
lx,19dez99

17.
altis.
lx,jan2000

18.
teu:
bezerro d'oiro.
bambino d'oro.
lagos,27jul99

19.
santos lugares.
os teus lugares
santos.
lisboa, 10nov99

20.
cruzes na boca.
lx,11nov99

(de Máquina do Mundo, edição do Autor, 2002 - capa de Julião Sarmento; paginação de Manuel Rosa)

8.1.04

JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA

11


noite.

sobre as pedras quase brancas, mármores do sul
talvez,
jazem os cordeiros de maio,
algures, mais longe,
nos montes de Putney e Vilna, agora floridos,
ocres e sem fim, como nunca.

aí se demorou jeremias
apenas o tempo do sacrifício,
tempo certo, tempo inútil,

... tempo... tempo... tempo...

receberam-no as ruas estreitas,
sob a transparência das pedras outrora brancas na
estação oriental
onde se abrigam os vagabundos dos estios propícios,
sobreviventes de atlântida e sodoma.

essa foi um dia a região das chuvas escassas, dos
velhos cedros e dos viajantes de outras eras,
de perto sentida pela loucura de jeremias,
o primeiro cantor;

eis uma vez mais, a última,
eis Putney e Vilna entre as muralhas e o castelo e o vale adormecido,
e, algures, mais longe,
as cabanas ao lado do cais;

ei-lo ainda,
jeremias que passa sob a morada das pedras
outrora brancas,
talvez mármores do sul,
onde se escondem a memória do ritual e os cânticos do ritual,

ei-lo ainda,
jeremias que enlouquece à sombra da breve
cerejeira.

(de jeremias o louco, Centelha, 1978)
An S. O. S. to the world:

I think I'm not alone in being alone

7.1.04

"Os cristãos desejam-se arrombadores de arte sacra", considera ele e muito bem, a propósito daquela minha entrada de ontem.
G. K. CHESTERTON

O crescente número de intelectuais que se contentam em afirmar que a democracia foi um fracasso, esquecem o aspecto muito mais trágico e calamitoso que é o facto da plutocracia ter sido um sucesso. Ou seja, que a plutocracia tem tido a única espécie de sucesso que podia ter, porque, não tendo uma base filosófica nem moral, nem sentido sequer, o seu sucesso não podia deixar de ser um sucesso material, um sucesso grosseiro. A plutocracia pode ter apenas o significado de um sucesso de plutocratas enquanto plutocratas. E esse sucesso, gozaram-no eles até há pouco tempo, quando um juízo económico imparcial os abalou como um abalo de terra. Com a democracia o caso é exactamente o oposto. Podemos dizer, com alguma verdade, que a democracia falhou; mas com isso queremos apenas dizer que a democracia falhou na sua tentativa de existir. É um absurdo dizer que os Estados Capitalistas complicados mas centralizados nos últimos cem anos sofreram com a extravagância da igualdade dos homens e da simplicidade da humanidade. Quando muito, poderíamos dizer que a teoria civil preparou uma espécie de ficção legal, segundo a qual um rico homem podia governar uma civilização, quando outrora não podia governar senão uma cidade (...)

(da Autobiografia, trad. e notas de Luís de Sousa Costa, Livraria Morais editora, 1960 - Círculo do Humanismo Cristão)
Lume:
pedra moldada no limite do calor
que encontra o seu chão.

6.1.04

POESIA E BLOGUES (III)

SANDRA COSTA


Nasceu em São Mamede de Coronado, em 1971.
É professora de história e mantém, com a Cláudia Caetano o blog Tempo Dual.


POR ONDE COMEÇAR?

Por Onde começar quando a cor do poema
é um rumor de sal que se agarra aos meus dedos?

Quando o brilho da lua é um fio de maresia
que erra explora se espanta e se desfaz
na claridade marítima dos meus seios?

Quando o perfume das magnólias é um possível cúmplice do vento
que se abriga nos meus teus olhos numa lágrima de ternura?

Por onde começar?...


VEM UM VENTO DO MAR

e a melancolia dança pelos pedaços das cortinas
onde quase-anjos prendem os véus do tempo

Vem um vento do mar

e a solidão interrompe-se nos poros da madeira enegrecida
e nos trilhos que espreitam a janela desde a água

Vem um vento do mar

e há um respirar de espera nas rugas da casa que não se vê


FALÉSIA

A falésia é uma escada para o mar
onde a morte dos dias demora
e as noites acontecem como um presságio.

É um outro horizonte onde os barcos
se perdem em ausências e os filamentos
das anémonas e dos corais se agarram
para que o tempo não caia em desuso.

É um mesmo silêncio que o mar também
sente. Uma mulher que vai pela praia
em lentos passos de pedra e o olhar

náufrago
na maresia.

A falésia é um reflexo do mar.

(de Sob a luz do mar, Campo das Letras, 2002 - Campo de Estreia)


NADA SE SABE DAS PROFUNDEZAS
(primeiro estudo para uma duplicidade)


#1
À superfície do mundo
a ondulação do desejo:

uma pedra - o amor - submersa.

#2
pode o poema permanecer
em círculo água em movimento
e sempre insuficientes as pálpebras
susterem o silêncio?

#3
talvez esta seja a textura dos dias
que se aproximam das profundezas:
a agitação sob a luz nada revela
e criam-se estratificações nebulosas
junto ao olhar como se a inquietude
- a água - fosse o único ritual
capaz de criar o mundo.

#4
[quero] toda a poesia é assim:
um lugar onde a superfície
esconde mais do que revela
e a morte é a pedra possível dentro da água
ao alcance do braço se nada se sabe das profundezas

(texto integral de um livrinho de 8x5,5 cm, com projecto gráfico e fotografias de Paulo Gaspar Ferreira e editado pela in-libris, em 2003)
O Ponto anda divertido com o sitemeter. De facto, das coisas mais engraçadas para quem tem um contador de acessos ligado ao blog é surpreendermo-nos com as pesquisas que fazem os cibernautas chegar até nós.
Depois de referir "Cursos de inglês em Massamá", "Banda sonora dos Morangos com Açúcar", "Sodoma e Gomorra" e de eleger "Quero ver grandes e boas imagens de sexo" como preferida, dedica ainda uma entrada inteira a "Onde comprar ruibarbo?".
Tudo bem... são giras; hoje também cá chegou um à procura de "cancoes dos reis magros". Mas nada que se compare a um espanhol à procura de "retratos de carne guisada".

5.1.04

A imagem com que o Miguel da Cibertúlia deu as Boas Festas na véspera de Natal fez-me voltar a pensar nas questões que se puseram a propósito dos quadros de Paula Rêgo na capela do Palácio de Belém, encomendadas pelo Presidente da República. Nas secções de correspondência dos jornais houve católicos a manifestar a sua indignação, a considerarem uma afronta à figura de Nossa Senhora e à Igreja.

Eu, que sou católico, devoto de Nossa Senhora e também apreciador de arte (ainda que sem grande formação além do que o acaso me traz e das exposições que vou vendo), não me sinto nada ofendido com aqueles quadros.
Nos contextos cristãos (católico, ortodoxo e até mesmo em muitos espaços da Reforma) as várias artes têm sido um meio privilegiado de divulgação da fé como método catequético, de manifestação religiosa e elemento essencial da(s) liturgia(s). Cada tempo e cada lugar transportaram os acontecimentos da fé para o seu próprio contexto e visão do mundo, criando aquilo a que os mais "realistas" chamarão anacronismos.
Um Rei Mago oriundo de Terras de Vera Cruz, com penacho de índio e tudo; um Cristo crucificado gordo à imagem de Buda; o Menino Jesus a brincar com uma hélice renascentista; o apóstolo Pedro vestido de brocados e com tiara papal – nada disto choca os mais renitentes conservadores das "tradições católicas".
Por outro lado a iconografia religiosa nunca foi do uso exclusivo das ortodoxias religiosas nem do teologicamente correcto. Desde cedo que as imagens e símbolos dos cristãos ganharam formas mais populares e simplificadas e extravasaram do contexto próprio em que nasceram ao mesmo tempo que se cristianizavam realidades vindas de muitos lados, numa espécie de troca espontânea, prejudicada pelas tentativas de uniformismo cultual e cultural.

Toda a arte é, em princípio, subversiva. Paula Rêgo tem demonstrado, no desenvolvimento da sua Obra, que sabe canalizar essa subversidade com pertinente ironia e provocação. No caso destes quadros sobre a vida de Nossa Senhora não me parece que haja uma intenção de provocação. Quem leu a entrevista da Grande Reportagem há uns meses, ficará esclarecido (se quiser...) quanto às intenções da pintora. A vida de Maria é usada enquanto história de um imaginário não exclusivamente cristão, deixando de lado teologias ou interpretações religiosas para dar relevo a uma dimensão humana, que passa, obviamente, pela mediação subjectiva da autora.

Tenho para mim que este pode ser um bom exemplo de que a forte influência da cultura cristã na Europa não se resume às estruturas eclesiásticas e que chega a muitos outros ambientes, mesmo aos mais refratários a estas coisas da fé. Assim nas artes como nos valores morais ou nas ideias políticas.

Não podemos ter medo daquilo que em nós começou, antes devemos procurar conhecer o sentido e dar testemunho daquilo em que acreditamos.

Acho que poderia rezar diante de alguns daqueles quadros.
[outros melros XIV]

HANS-ULRICH TREICHEL

BITS E BYTES


Isto não pode acabar bem
isto não pode ser verdade
a lengalenga da eterna
zoada a fábula do
contínuo silvar bits e
bytes escrevem os poetas
nos poemas como se fossem
girassóis como se fosse
canto de melro esse brilho
digital módulos modems
que dia a dia nos cruzam
verdes de vidro fluentes
como éter precisos como
um cintilar no cérebro

[de Como se fosse a minha vida, tradução colectiva (Mateus, Outubro de 1993) revista, completada e apresentada por João Barrento, Quetzal editores, 1994]

4.1.04

[gosto muito de inventários XXXVII]

FABRÍCIO CARPINEJAR

Com cópia em papel carbono


Identificaram os seguintes itens na memória de um homem de idade indefinida, morador solitário da Rua do Arvoredo, em letra datilografada numa Olivetti verde, com fita vermelha e preta. Uma por uma das peças e pequenos fósseis foram retirados de suas lembranças. Havia mais de cem pedras obstruindo a vesícula da memória.

Kichute. Vinil. Creolina. Mimeógrafo. Placar. Corcel II. Carpim. Eslaque. Laquê. Bilboquê. Bambolê. Marcha no guidão. Groselha. Ki-suco. Vendedor de Mirador. Perdidos no espaço. Jeannie é um gênio. Elo Perdido. Terra de Gigantes. Daniel Boom. Figueroa. Túnel do Tempo. Fitipaldi. Pampa Safari. Escaler. 14 Bis. Secos e Molhados. Revista Manchete. Futebol cards. Bolita. Pegador de armazém. Balança de pinos. Sete belos. Funda. Sapato de bico. Boca de sino. Chacrina. Gretchen. Bolinha. Saramandaia. Irmãos Coragem. Bigode. Paulo César Pereio. Mad. Maricas. Dona Flor e seus dois maridos. Pink Floyd. Corneta do Rintintin. Lassie. Bolachas Maria. Guimba. Fralda de pano. Auxílio à lista. Dancin'Days. Discoteca. Meretriz. Sofá-cama. Beliche. Loção pós-barba. Ceasa. Herbie. Fusca. Opala. Ilha do paraíso. Love story. Nescau. Regina Duarte. Cruzeiro. Fiado. Lampião. Minancora. Babados. Mequetrefes. Grega. Abrigo Adidas. Balela. Disco. Caldo de cana. Mandiopã. Coelho Ricochete. Reunião dançante. Hanna & Barbera. Cueca virada. Bolinho de chuva. Pipoca com mel. Cuba libre. Cartilha. Caderno de caligrafia. Globo de espelhos. Supercine. Papel de parede. O céu é o limite. Jota Silvestre. Flavio Cavalcante. Escrava Isaura. Sobrancelhas raspadas. Peruca. Playmobil. Meias de lurex. Cuecão. Drive in. Polaroid. Santinhos. Corner. Pelota. Tiro de canto. Cinto para emagrecer. Pulseiras magnéticas. Magnésio. Cestas de natal. Caloi. Estação férrea. Prostíbulo. Curetagem. Sacristão. Coroinha. Felação. Arena. Venezianas. Vidro fumê. Óculos Ray Ban. Estilingue. Abluções. Chaco. Mercúrio Cromo. Panacéia. Casquinha. Amolador. Sal de frutas. Bolo inglês. Morfina.

Mesmo lavrado em cartório, o homem precisou de um tradutor para dar sentido ao que recordava. Usava suspensório. Guardava a dentadura de alguém no copo de requeijão. O relógio da parede da cozinha não acompanhava o horário de verão, dando sinais de subversão. Uma cobiçada reprodução da Última Ceia estava fixada com durex no corredor azul. Muitos vocábulos saltavam sublinhados. Ele era um dicionário aleatório. Verbete sem sinônimo e esposa. Reduzido pela rua, se considerava perseguido pela língua, minoria nas palavras cruzadas. Suas fotos não tinham rascunhos. Não deixou herdeiros. As datas apareciam borradas. Costumes foram umedecendo no papel de presente dos cadernos e do fundo das gavetas. Era o que não voltou. Tudo o que escrevia fazia em papel carbono. Ele se dizia consumido.

(roubado, hoje mesmo, daqui)
[gosto muito de inventários XXXVI]

ANTÓNIO GEDEÃO

Pedra Filosofal


Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

(de Movimento Perpétuo, 1956)
[gosto muito de inventários XXXV]

MÁRCIA MAIA

inventário


reparto
talheres
e
panelas

ao
fogo
a mobília
e
todas
as
tralhas
antigas.

ex-
relíquias
adeus!

quero-
me

quando
o
sol
do
último
dia
aparecer.

(roubado daqui, no último dia do ano passado)
[gosto muito de inventários XXXIV]

JOAQUIM PESSOA

É um barco e uma pedra.
É a pedrada no charco.
É o orvalho na erva.
É a bandeira. É o arco.
É a chuva. É o outono.
É a sopa de hortelã.
É o cão que não tem dono.
É o bicho da maçã.
O tempo que está mudado.
É o orgulho nacional.
É a balada. É o fado.
A galinha no quintal.
O carneiro a remoer
as hortenses da avenida.
É o silêncio a bater
numa vidraça partida.
É o ódio que nos cega.
É o braço que se estende.
O discurso. A cabra-cega.
É o homem que se vende.
É o peito que não pára
de apertar o coração.
É a comida mais cara.
É a cara contra o chão.
É a semente na terra.
É o trigo na seara.
É uma arma de guerra.
É a raiva que dispara.
É o lobo que devora
as canelas da poesia.
É o momento. É a hora
de estrangular a alegria.
É a videira. É o vinho.
É o copo de amargura.
É a santa da Ladeira.
São as raias da loucura.
É o tejo que se embala
num cacilheiro doente.
É o desejo que estala.
É o buraco no dente.
É o dinheiro. É o juro.
O amor em percentagem.
É o passado e o futuro.
É uma questão de coragem.
É o que sobra. É a falta.
É o emprego decente.
É a amizade da malta.
É a ternura da gente.
É a mulher que pariu.
É o filho que se fez.
É a corda e o rastilho.
É o sarilho outra vez.
É o mapa desenhado
sobre as costelas partidas.
É o sorriso emprestado.
A hipoteca das vidas.
É a mágoa registada.
É a patente do medo.
É a cultura enlatada.
É o drama sem enredo.
É o rugido da fera.
É o marquês de pombal.
O cravo na primavera.
Uma prenda de Natal.
É o azul. É o vício.
É a carga de porrada.
É a cara do polícia.
É a liamba fumada.
O ministro que promete
que amanhã irá chover.
O desenho na retrete
para toda a gente ver.
É a dança. É o marasmo.
A paragem do autocarro.
É atingir o orgasmo
com o fumo de um cigarro.
É chamar nomes à mãe
do tipo que está ao lado
e responder a alguém
Eu estou bem, muito obrigado!

(de Português Suave, 1979 - incluído em Amor Combate, Litexa, 1985)