24.12.15

WILLIAM CARLOS WILLIAMS


O POEMA 

Tudo está
no som. Uma canção.
Raramente uma canção. Deveria

ser uma canção  com
pormenores, vespas,
uma genciana — algo
imediato, tesouras

abertas, olhos
de mulher  centrífuga
ao despertar, centrípeta


(in Antologia Breve, tradução de José Agostinho Baptista, Assírio & Alvim, 1995)

27.11.15

ISABELA FIGUEIREDO


A forma como olhamos para as nossas mãos na infância e a forma como olhamos para elas agora; estou a olhar para as minhas mãos agora, não muda. As mesmas mãos. Como puderam envelhecer e ser ainda as mesmas? As unhas iguais. Os nós dos dedos. Os mesmos olhos. O mesmo pensamento, quando olhamos, com os mesmos olhos, as mesmas mãos.
A partir de certa idade, muito cedo na infância, já somos nós, o que há de perseguir-nos sempre.



(excerto de Caderno de Memórias Coloniais, 6.ª edição, revista e aumentada: Editorial Caminho, 2015)


ANA TECEDEIRO


A minha mão começa
onde acaba a manga
Os meus dedos começam
onde cortei a luva
(Eu começo onde me descubro)


(de Deitar a Trazer, douda correria, 2015)

14.11.15

PAUL ÉLUARD


CORAGEM

Paris tem frio Paris tem fome
Paris já não come castanhas na rua
Paris anda vestido de velha
Paris dorme de pé sem ar no metropolitano
Ainda mais sofrimento é imposto aos pobres
E a sabedoria e a loucura
De Paris infeliz
É o ar puro é o fogo
É a beleza é a bondade
Dos seus trabalhadores famintos
Não peças socorro Paris
Estás vivo com uma vida sem igual
E por detrás da nudez
Da tua palidez da tua magreza
Tudo o que é humano se revela nos teus olhos
Paris minha bela cidade
Fina como uma agulha forte como uma espada
Ingénua e sábia
Tu não suportas a injustiça
Para ti só existe a desordem
Vais liberta-te Paris

Paris bruxuleante como uma estrela
Nossa esperança sobrevivente
Vais liberta-te da fadiga e da lama
Irmãos tenhamos coragem
Nós que não usamos capacetes
Nem botas nem luvas nem somos bem educados
Um raio se acende em nossas veias
Os melhores de nós morreram por nós
E eis que o sangue dos que morreram nos volta ao coração
E de novo é a manhã uma manhã de Paris
O extremo da libertação
O espaço da Primavera que nasce
A força idiota está na mó de baixo
Estes escravos nossos inimigos
Se compreenderem
Se forem capazes de compreender
Erguer-se-ão.


(in Algumas das Palavras, tradução de António Ramos Rosa e Luiza Neto Jorge, 2.ª ed.: Publicações Dom Quixote, 1977 / original de Au rendez-vous allemand, 1942)

26.10.15

FÉLIX CUCURULL


XXXVI

Direis, talvez:
já deixámos de ser crianças
e os anjos dissiparam-se.
As mãos adultas
fazem mal aos sonhos
que não têm raízes
profundas
nestes campos onde apenas floresce
a semente das coisas concretas.
Fizemos mal ao sonho dos anjos
e a nossa paz futura
será a dos ciprestes
que crescem em silêncio.
Dentro da sua seiva
poderemos triunfar — juntos! —
diante das estrelas
e dos vivos em que viveremos, quando lutam,
no esforço sempre retomado
do cérebro e dos músculos,
para ser, apenas ser
— indómita vontade...
Perduraremos para sempre
matando a sede nas chuvas.



(in Vida Terrena, tradução de António de Macedo com a colaboração de Carlos de Oliveira, Editora Ulisseia, 1966 / original de Els Altres Mons, 1952)

25.10.15

RAYMOND QUENEAU / ALAIN RESNAIS


LE CHANT DU STYRÈNE 

O temps, suspends ton bol, ô matière plastique !
D'où viens-tu ? Qui es-tu ? et qu'est-ce qui explique
Tes rares qualités ? De quoi es-tu donc fait ?
Quelle est son origine ? En partant de l'objet
Retrouvons ses aïeux ! Qu'à l'envers se déroule
son histoire exemplaire.

Voici d'abord le moule.
Incluant la matrice, être mystérieux,
il engendre le bol ou bien tout ce qu'on veut.
Mais le moule est lui-même inclus dans une presse
qui injecte la pâte et conforme la pièce.
Ce qui présente donc le très grand avantage
d'avoir l'objet fini sans autre façonnage.

Le moule coûte cher : c'est un inconvénient -
mais il peut re-servir sur d'autres continents

Le formage sous vide est une autre façon
d'obtenir des objets : par simple aspiration.

A l'étape antérieure, adroitement rangé,
Le matériau tiédi est en plaque extrudé.

Pour entrer dans la buse il fallait le piston
et le manchon chauffant - ou le chauffant manchon
Auquel on fournissait - Quoi ? Le polystyrène
vivace et turbulent qui se hâte et s'égrène.
Et l'essaim granulé sur le tamis vibrant
fourmillait tout heureux d'un si beau colorant.

Avant d'être granule on avait été jonc,
joncs de toutes couleurs, teintes, nuances, tons

Ces joncs avaient été suivant une filière
un boudin que sans fin une vis agglomère
Et ce qui donnait lieu à l'agglutination ?
Des perles colorées de toutes les façons.
Et colorées comment ? Là devient homogène,
le pigment qu'on mélange à du polystyrène.

Mais avant il fallut que le produit séchât
et, rotativement, le produit trébucha.

C'est alors que naquit notre polystyrène
polymère produit du plus simple styrène.
Polymérisation : ce mot, chacun le sait,
désigne l'obtention d'un complexe élevé
de poids moléculaire. Et dans un autoclave
machine élémentaire à la panse concave
les molécules donc s'accrochant, se liant
en perles se formaient. Oui, mais - auparavant ?
Le styrène n'était qu'un liquide incolore
Quelque peu explosif et non pas inodore.

Et regardez-le bien : c'est la seule occasion
pour vous d'apercevoir le liquide en question.

Le styrène est produit en grande quantité
A partir de l'éthyl-benzène surchauffé.
Faut un catalyseur comme cela se nomme
oxyde ou bien de zinc ou bien de magnésium.

Le styrène autrefois s'extrayait du benjoin
provenant du styrax, arbuste indonésien.

De tuyau en tuyau ainsi nous remontons
à travers le désert des canalisations
vers les produits premiers, vers la matière abstraite
qui circulait sans fin, effective et secrète.

On lave et on distille et puis on redistille
et ce ne sont pas là exercices de style
l'éthylbenzène peut - et doit même éclater
si la température atteint certain degré.

Il faut se demander maintenant d'où proviennent
ces produits essentiels : éthylène et benzène.
Ils s'extraient du pétrole, un liquide magique
qu'on trouve de Bordeaux jusqu'au coeur de l'Afrique.

Ils s'extraient du pétrole et aussi du charbon.
Pour faire l'un et l'autre, et l'autre et l'un sont bons.
Se transforment en gaz, le charbon se combure
et donne alors naissance à ces hydrocarbures.

On pourrait repartir sur ces nouvelles pistes
et rechercher pourquoi et l'un et l'autre existent.
Le pétrole vient-il de masses de poissons ?
On ne sait pas trop ni d'où vient le charbon.
Le pétrole vient-il du plancton en gésine ?
Question controversée... obscures origines...

Et pétrole et charbon s'en allaient en fumée
Quand le chimiste vint qui eut l'heureuse idée
de rendre ces nuées solides et d'en faire
d'innombrables objets au but utilitaire.
En matériaux nouveaux ces obscures résidus
Sont ainsi transformés. Il en est d'inconnus
qui attendent encore un travail similaire
pour faire le sujet d'autres documentaires.

1.2.15

PAULO JORGE FIDALGO


TEORIA DA RELATIVIDADE

Ah como choram os poetas portugueses d'agora,
como gritam os jovens plumitivos desta época,
corações em sangria e vinho d'alhos,
versos sinistros e chocalhos nos pés.
Oh malvadez, guarda de culpa tanta arte.
Oh musa, não queiras que se acabe o raro uso
de sacrificar em verso coxo o hálito dos deuses.
Cesse tudo aquilo que as porras antigas nos legaram
e deixemos aos séculos meia dúzia de peúgas.
Oh fadas, três remendos valem bem um açafate.

Quanta beleza nestes jovens dados às letras
e à difícil harmonia dos fonemas,
poetas tempestivos e sem hora,
cultores da nova tecnologia do ripanço,
brilhantina gorda na caneta e sebo nas gravatas
ajudam o tal gamanço feito a quatro patas.


(de Síntese Poética da Conjuntura, Hiena Editora, 1993)

31.1.15

JOÃO ALMEIDA


GLÓRIA E ETERNIDADE

Poesia aqui só na ponta do verso eu sei
tudo tão frio à mesa, em trânsito
e que apanho do chão reproduções electrónicas
e pedacinhos de literatura inclusa também sei

apago a manhã no primeiro cigarro, enquanto dormes
arrumo a verdade da noite em lixo separado
dez pontas de cigarro, um filtro amarrotado
o calor da língua
esquecimento cada vez mais

ouço os labores do dia
as extremidades do trabalho no cimo do monte

aqui vou por lado nenhum
mesmo que diga fico aqui
nada se aquieta ou se desprende. Sento-me
à roda imparável do almoço

o barulho da televisão
e a luz que irradia também são mesa e cadeira

uma revelação de fogo circunscrito.


(de A Formiga Argentina, Edições Averno, 2005)

26.1.15

WENCESLAU DE MORAES


Eu tenho aqui um gato, um companheiro, um amigo, um grande amigo. Num livreco meu, relativamente recente ('O Bon-Odori em Tukushima'), que corre mundo... pelas tendas, fiz o elogio da gata, não do gato, como companheiro do homem solitário. Convém dizer que não mudei de aviso; mas a minha gata morreu, deixando-me um filhito, que me vi naturalmente obrigado a proteger, conservando-o no meu lar.
Ora, em cada Verão, o meu gato impõe-me a árdua tarefa de catar-lhe as pulgas que o mofino vai apanhar, aos cardumes, não sei onde, nos seus passeios vagabundos, atrás de gatas vadias, por estes quintais fora... O bicho, mercê do hábito, sujeita-se pacientemente, de ordinário, à operação; posto que por vezes se irrite, quando me dou ao trabalho melindroso de sacar do pêlo a pulga morta, ou quase morta; pois vou juntando todas, contando-as após, o que me dá útil informe, em referências ao acréscimo, ou decréscimo, nas tendências invasoras do desagradável parasita. Se o gato então se enfada muito, eu brado-lhe em voz bem alta, meio-agastado, meio-irónico: - «É para a estatística!» - E desato logo a rir, lembrando-me que muitos chefes de secretaria do meu burocrático Portugal, cavalheiros graves, engravatados, com óculos fixos nos narizes, irão importunando os seus amanuenses com a confecção de enfadonhas listas de bagatelas, de insignificâncias, e bradando-lhes também, como eu brado ao meu gato: - «É para a estatística!» - Pobre gato e pobres amanuenses!...


(in Wenceslau de Moraes, selecção de textos e introdução de Armando Martins Janeira, Portugália Editora, 1971 / original de Ó-Yoné e Ko-Haru, 1923)

24.1.15

M. S. LOURENÇO


VI
I
Sem trocar a nuvem por Juno,
Do Gades ao Ganges poucos distinguem um ovo dum espeto.
O espírito conduz a vontade e o medo?
Não lamentamos entrar com o pé direito?
A ruína vem do que pedimos aos deuses.
Afogamo-nos no dilúvio da propaganda,
Chocamos com a elevação do músculo militar.
Poupar arruina. Nero cercou Longinus e Séneca;
Uma coorte assaltou o palácio de Laterano;
Raro os soldados entram num cenáculo.
Com duas moedas de prata, à noite, receias o ladrão,
Tremes com a sombra da folha ao luar.
O pobre ri-lhe na cara.

II
Nos templos pede-se acções maiores no Fórum,
Que o juro cresça depressa.
Não bebes aconite numa taça de barro,
Odeia-la quando tens porcelana,
Quando as bolhas ardem no ouro.
Não louvarias, pois, os dois sábios,
O que ria e o que chorava ao sair de casa?
Pode-se condenar a rir mas tanta água surpreende.
Demócrito sacudia os pulmões com riso,
Mas nunca viu os fasces, os tribunais, togas de púrpura.
Se visse o Pretor no seu carro,
No pó do circo, túnica de palma,
Toga de ouro aos ombros, com uma coroa insuportável!
Debaixo dela sua um escravo,
Para contento do Cônsul senhor e escravo no mesmo carro.
Há ainda a águia, no ceptro de marfim,
Aqui os corneteiros, ali os clientes, numa toga de neve,
Amigos comprados no jantar da véspera.
O filósofo riu-se da multidão,
Até das suas lágrimas,
Quanto a si fazia um manguito à fortuna.

III
Untamos as coxas dos deuses com cera
E em troca recebemos palha.
O poder e a cobiça destroem.
As honras afogam: as estátuas são apeadas.
Sejano, querido do povo, arde na fogueira.
Com a sua face modela-se uma caçarola.
Louro sobre as portas!
Um touro para o Capitólio!
Alegres, todos arrastam Sejano.
«Que lábios que ele tinha! Que figura!»
«Podes crer que nunca gostei dele»
«Condenado porquê? Sem culpa formada?»
«Nada disso, uma carta palavrosa de Capri»
«Já estou a ver».

IV
O povo segue a fortuna, odeia os condenados.
Os mesmos chamar-lhe-iam Augusto,
Se Nortia lhe tivesse sorrido.
Como não podemos votar
O horizonte é mariscos e cama.


(de Arte Combinatória, Moraes Editores, 1971)

23.1.15

ALBERTO PIMENTA


uma arte de «crueldade»

Efectivamente, nos últimos decénios, a evolução e o aperfeiçoamento da «metafísica tecnológica» e o consequente descrédito da ideologia, o seu carácter profundamente 'kitsch', derivado da sua falta de autenticidade, também do abismo entre realidade humana e teoria humana (e humanitária), a interferência crescente da informação (totalitária) na liberdade de conhecer, não deixaram à razão estética outra solução além da recusa cada vez mais obstinada e intransigente de aceitar os seus sistemas simbólicos, com a consequente luta aberta de princípios: uma luta perdida a priori, é certo, mas ainda não terminada e que não pode senão encarniçar-se de ambas as partes, recrudescendo apenas de crueldade e violência. Uma crueldade, da parte da poesia, como a entende Sanguineti:
«A crueldade indica, nesta situação, o grau de cinismo violento com que a palavra é capaz de propor uma nova dimensão classificatória, no acto de experimentar e criticar, dentro do horizonte da literatura, o nexo real das próprias coisas.»
Adorno usa uma terminologia semelhante:
«Quanto mais pura a forma, maior é a autonomia das obras e maior a sua crueldade.»
A crueldade reside ainda, e talvez sobretudo, no recusar-se a servir de objecto de prazer, de conciliação com a realidade. E assim que este tipo de arte esteticamente emancipada (acima de tudo esta chamada 'poesia moderna') não funciona como representação «clara e pouco usual» da realidade, nem como hipóstase de um mundo imaginado ou como ersatz para a frustração existencial, nem como mito: funciona como recusa de colaborar com a totalidade na sua lenta e constante destruição do indivíduo e da sua livre e autónoma consciência. Para esse maravilhoso, infelizmente mal conhecido Oswald Wiener, «cada frase é um ponto arquimédico para reduzir este mundo a escombros». E só assim pode ser. E Nanni Balestrini declara:
«Uma poesia portanto como oposição. Oposição ao dogma e ao conformismo que ameaça o nosso caminho, que solidifica as pegadas atrás de nós, que nos ata os pés, tentando imobilizar-nos os passos. Hoje mais que nunca é esta a razão de escrever poesia.»


(in O Silêncio dos Poetas, Livros Cotovia, 2003 / 1.ª edição: 1978)

5.1.15

NIETZSCHE


O lado mais claramente compreensível da linguagem não é a palavra em si, mas a sonoridade, a intensidade, a modulação, o ritmo com que as palavras encadeadas são pronunciadas - em resumo, a música por detrás das palavras, a paixão por detrás desta música, a pessoa por detrás dessa paixão: tudo aquilo, portanto, que não pode ser escrito. Por isso, a escrita nunca nos levará muito longe.


(traduzido e citado por João Barrento, in Geografia Imaterial - três ensaios sobre a poesia, Documenta, 2014)

2.1.15

FERNANDO ECHEVARRÍA


A LUZ NOS GUIE DO TEU ROSTO. APENAS
ela nos seja, mesmo à noite, dia.
E a abundância de dias enriqueça
esta velhice desprendida,
de forma a os frutos lúcidos da terra
dispensarem maior sabedoria.
E reunirem. Serem porta aberta
que a chegada dos outros endominga.
Como o domingo se endominga à mesa
com os frutos polícromos do dia.
E sobre todos esses frutos se erga
o teu rosto de luz, mesmo que o enigma
da sua claridade ainda só seja
a que há-de vir. E já desponta. E vinga
como o esplendor, depois da noite hesterna,
que recupera terra mais antiga.



(de Lugar de Estudo, Afrontamento, 2009)

1.1.15

JOSÉ BLANC DE PORTUGAL


EPICÉDICA

Liso é o choro do passado
Concreta a voz que esconde o dia de hoje
(O travo seu agora foge
Escuso na sombra do grito adiado).

Perdeu-se o gesto da tragédia
Liso é o choro do passado...



(de Odes Pedestres, editora Ulisseia, 1965)