16.10.14




FERNANDO ECHEVARRÍA


AUTO-RETRATO DE REMBRANDT

1
A TELA OCULTA O OUTRO DE SI MESMO.
Que vai surdindo dela, da perdição de análise
que está no espelho lendo
a figura perdida, já só quase
ver o fora por dentro,
enquanto ver perdura em sua idade.
Cada minúcia incita no momento
a luz do objecto visto. E a do transe
duma veia infalível a que o peso
instrumental se iluminasse.
E, do fundo do outro de si mesmo,
o ver se vê. Com o só dentro de exterioridade.

2
E A DISCRIÇÃO DE VER DOMINOU TANTO
que a implacável doçura da velhice
se esqueceu de ir chegando,
com o uso da roupa, a essa luz humilde
de crânio coroado
de indiferença à encenação sensível.
E essa indiferença cumpre-se no trato
do porte diligente que a atenção atinge
e deixa iluminar-se até no pano,
gasto no uso que exige
a paciência esquecida no trabalho.
E que o estudo a claridade erige.

3
QUE A DISCRIÇÃO TAMBÉM É LUZ. DESPRENDE-SE
tanto da roupa como da paciência
com que se espera que o olhar se entregue
ao ajuste objectivo que a tristeza
instaura à volta de cada coisa. A ergue
à só indiferença de si mesma.
Não é luz que jubile. Apenas serve.
Cumpre a penumbra duma árdua empresa
em que tufos minúsculos somente
difundem uso de quase só emergência.
De aí as formas surdem. Quase nem se
desembacia o lume da surpresa.

4
OU É A SURDA SURPRESA DO VAGAR
que pelo escuro dos castanhos sobe
até um cinzento por que não se dá
nem na camisa, nem no rubro pobre
do manto casual.
Que na paleta quase que se escondem,
como se funde na mudez das mãos
a inteligência agora quieta. Porque
espera que ver as mova instrumentais
e só então acordem
a esse sono sobrenatural
que volve humilde o poderio ao homem.

5
O SILÊNCIO COMEÇA DESDE BAIXO.
É de onde aponta a escuridão das linhas
que vão gerar essa estrutura de ângulos
difícil, mas de fundação precisa.
O pincel o sigilo vai ao canto
mais fosco alimentar. E traz acima
o nascimento vertical do traço
que o silêncio da tela em sua orla afinca
e, a custo, faz recrudescer o alto
vagar de ver. A independência pia
com que, do outro de si mesmo, tanto
a distância de ver se determina.

6
E, AÍ, A LUZ, DIR-SE-IA QUE DE DENTRO
da operação de estar a ver nos vem.
E quanta baste para nós lhe vermos
a claridade exterior. E o trem
de sono que a brancura deixa ao centro
da indiferença com que já se vê.
Mas que prolonga o horizontal acerto
da tela que na tela é tenso. E é
rectângulo que diz o descoberto,
enquanto o inferior é só refém
duma paleta que lhe adumbra o peso
e nutre o luto arcaico do pincel.

7
E UM OUTRO, DE VERTICAL DIFUSO
e de uma escuridão lenta de ofício,
de onde se arranca um quase eco de rubro
a um castanho profundo a abrir a vinho.
Mas de onde se adivinha sobretudo
que a vibração do escuro nos vai vindo,
até a cabeça destacar o vulto,
só iluminado quanto for preciso
para que em ver desembacie o estudo
a independência. Esse lugar vazio
que os outros de si mesmos vê no mundo
onde de si se vêem desprendidos.



(de Uso de Penumbra, 1995)