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18.11.16

JOÃO RUI DE SOUSA


O ESPELHO E A FACE

ao Rui Knopfli

É porque somos bóias da terra
e lesta a semente se move
é porque as roupas perturbam
e simples a alegria transcende
é porque a exaustão dos canos
impede sair de repente
é porque com vírgulas se abraçam
os gestos incandescentes
e a viagem viagem viagem
é a noite de muita gente
é porque com o fel das lágrimas
se afundam céus generosos
e são tao vis pedregosas
as mortes de tantas irmãs
é porque há a erva dobrada
mesmo sem vento ou granizo
e frágeis ramos deslizam
na fuga de mágoa e mágoa
– que nascem rugas no rosto
(a esperança e a desesperança)
por nomes de voz rasgada


(de Corpo Terrestre, 1972)

7.7.12

JOÃO RUI DE SOUSA


FRAGMENTOS PARA DEBUSSY
Evocando o Prélude
à l'après-midi d'un faune

Cíclica vertigem
aquecida ao rubro do teu canto
- espero e invoco.

Sinais de búzios,
compassados ecos,
completos sempre
em vegetal memória.

Esperar? Exacto
- que há sempre mais e mais
na voz da água pura.

Pedir? Também
- que é sempre cheia e grave
a face que escolheste.

Querer mais? Muito mais?
Não sei. Fértil e exacto
o que me dão, nada mais me cabe.

*

Se invoco um nome grato
é porque, à luz com que eu encontro
a claridade em castos olhos,
invoco, julgo, um nome com o meu sangue.

Se invoco um nome afável
- guitarra        harpa
                               astro puro        areia -
é porque sei ou sinto
que é aí - está aí -
a paisagem que me abrange.

*

De novo surges
como névoa ao sol da vida,
estrídulo arco,
como um papel branquíssimo
sobre a areia.

De novo surges...

*

Singelo e ao vento, persigo-te
(nos ramos, na flor, na aragem)
até encontrar a oculta voz,
o espírito puro
com que tudo se move e dilui
- para beijá-lo.


(de Circulação, 1960)



8.12.11


JOÃO RUI DE SOUSA


QUANDO AMANHÃ

Quando amanhã,
na subida mais íngreme daquele monte,
um deus inscrever seu azulado arco
por sobre o fio geral do horizonte
- sobre o esplendor das asas matizadas
pelo calor da lenha a crepitar, pelo fulgor
das cinzas espalhadas rente à terra
como adubo atirado ao amanhecer –
dirás quanto de mim for posse e perda,
sorriso e choro, sabor de doces frutos
ou parca ilusão:

dirás quanto de tudo a vida se revolve,
se incendeia.


RECOMENDAÇÃO

Mergulha e dissolve essas tensões
que pelas tardes cálidas sobrenadam.

Abre valas no tempo e na razão
(a do aturdimento, a do esquecer
as noites de ti próprio) e manuseia
alfaias com todo o desvelo
- transformando em música e palavra
(a voz de ti nascida)
o vasto e árduo esforço de drenagem.

Não deixes que as nuvens por demais
te pesem, por demais assombrem
rios e horizontes e arvoredos - como
cancelas postas no ar da paisagem.


RODA DOS VENTOS

O vento vai e vem, sobe as escadas
do caos e do esplendor
onde as palavras trémulas eram ar
de resistir ao pó e ao ranger das pedras.

O vento acompanha o rufar das folhas
que em transe e rodopio
roçam nos cimos das torres e telhados
ou do frio que habita em cada esquina.

O vento ruge e arde - é uma leve
estátua em movimento ou o irromper
de um estranho arco-íris que transportasse
o sol e as borboletas.

O vento canta em som que é das estrelas,
que é árvore exemplar em cada um
quando roça no ombro uma carícia
de dedos macios - os mais perfeitos.

Também o vento é morte em alto mar
de sombras e bramido e barcas leves,
transformadas em espuma e descalabro
e num estertor final de tábuas soltas.

Também o vento habita nos escombros
a dançar sobre nós como em conquista,
como a varrer a fronte quando a angústia
derrota o ânimo - e o próprio entendimento.

Ó ar que voa em nós em tudo e nada,
entre o fundo dos lodos e as framboesas!
O beijo tão coberto de incerteza!


VÊM DE DENTRO

Vêm de dentro, e sem fim, como as plantas
que ao nascerem ainda não soubessem
a que chuvas se destinam - ou geadas.

E crescem pelos dias, recolhidas na vastidão
dos prados, no som de labaredas inesperadas
e das enxadas que revolvem as margens.

Vêm de dentro, e sós, essas palavras - como
lugares de acaso, como chuvas despenhadas
ao ritmo regular de funda lavra.


(de Quarteto para as próximas chuvas, publicações Dom Quixote, 2008)

3.7.11

JOÃO RUI DE SOUSA


PRELÚDIOS

l


Prelúdios eram. E sobreviviam
ao tão contido tempo
de uma chama.

Na lentidão exacta
em que eles cresciam,
seus pascentes olhos
eram inícios
de directriz e lâmina.


2

No timbre dos começos,
reboam as auréolas e os címbalos
de bem-aventurança.

Felizes, tangem seus anúncios
de vivaz fortuna
(o clarão de um beijo os selará).


3

No alumínio corre,
em discretas tintas de alvorada,
a mão que principia.

Então, as ervas rasas
que a sustentam
tornam-se limos e perfumes
convergentes
no acordeão dos dias.


4

Férteis, os ventos desciam pelas margens,
desciam pelo branco de sublimes paredes.

Férteis, os ventos contornavam as rampas
com a sombra e o som dos clarinetes.


5

Irrompe talvez fácil o piano:
quase em tumulto, lesto e varonil;
ou ávido de plumas, gracioso e frágil.
Mas logo as suas teclas vão voando
em cadências graves, majestosas,
em rumor de calmas andorinhas
procurando poiso em outras margens:

as que, em seu recato, são
mansões de afecto;
as que, meditabundas, são vindima.


6

O amor é um pão nobilitante que
sagrado torna quem à boca o leve
nos dias mais altos: os dias oriundos
de taças erguidas sem palavras,
alçados na festa que os inunda.


7

Eis que de repente se abrem
as absolutas fontes (as pedras
consteladas, firmes, bem defronte
do coração habitado).

Eis que de repente um corpo arde.


8

Tremem as mãos de assombro e de alegria
quando, junto à deusa,
seguem a sua fragrância de amoras,
os seus delicados contornos:

são cálidos caminhos animados
crescentemente em nós.


9

O azul frequenta às vezes as palavras
como se fosse um deus esplendoroso
ou um sino alado, sobrevoante à vida,
ou um fruto essencial a boiar no mosto.

(O azul percorre às vezes a cidade).


(de Quarteto para as próximas chuvas, publicações Dom Quixote, 2008)

24.6.10

JOÃO RUI DE SOUSA


RUMOROSAS VOZES


Rumorosas vozes vinham
e depois paravam.

Talvez fossem só lágrimas caindo.
Talvez campos de sal que nos desciam
desde um horizonte de clausura
até às pálpebras:
para mostrarem como a vida estala
quando a alegria morre ou não cintila
em braços esplendorosos, na redondez
de um colo, na casa que é bem nossa
e pousa na cabeça,
e mesmo na grata circunstância
de trabalharmos tanto
no trato de um jardim desordenado
— sem árvores alinhadas nem canteiros,
sem corações opressos
por rectilíneas áleas.


(de Quarteto para as próximas chuvas, publicações Dom Quixote, 2008)

1.2.10

JOÃO RUI DE SOUSA

VIDA E MORTE DAS PALAVRAS


São vivas quando
o coração do vento amadurece
e a voz vem de repente
e não se esquece
de estremecer as trevas
ou de roer as malhas
da rotina
ou de dar lenha e fogo
(matéria inesperada
e sibilina)
a um barco que arrefece.

São mortas quando
a morte nelas cresce
- com os seus cabelos ralos,
suas ramagens crespas, desgastadas,
seus ossos cabisbaixos
rolados sobre o nada.
São mortas se não queimam
a limalha sobrante - esse pó
de cães exaustos, de dias
fatigantes -
e em podridão se instalam.

(de Quarteto para as próximas chuvas, publicações Dom Quixote, 2008)

15.2.07

JOÃO RUI DE SOUSA

A ESCRITA E A FALA


Enquanto o foco da fala
é um jacto que esmorece
no transeunte que abala
para a confusão da estepe
de cimento e ruas pálidas
de murchas árvores cercadas
por lebres motorizadas
(velozes balas ao vento)
a escrita
é um paulatino
ciclista que pedala
na cadeira de um jardim
ou no campestre da sala:
em sossego de marfim
pronto a reter enxurradas
de uma alma em corrupio
por tantas coisas sonhadas,
semoventes, renovadas
- tais sons em trilos de flauta
em torno aos peixes de um rio.

(de Lavra e Pousio, publicações Dom Quixote, 2005)

25.10.05

[um poema que me fez lembrar um dos meus blogues preferidos]

JOÃO RUI DE SOUSA

A LEBRE DE CORES


Confluem as cores na já descida
lebre que foi ontem madrugada.
Lesta como lebre, a despedida
era lebre de cores transfigurada.

Lesta (ou lépida?) a voz havida
dessa lebre de cores disseminada,
distribuída em pranto e em dor erguida,
sofria o sofrimento disfarçada

para não ferir as cores que se adensavam
na sua pele sedosa e nas cavadas
reentrâncias do pus da sua lida.

Era um grito distenso (apenas lasso?)
de quem por muito arder no seu cansaço
já morto estava antes de ser vida.

(de Enquanto a Noite, a Folhagem, 1991)