16.4.11


Cabeça de uma mulher, talvez de uma domina, Séc. II
[encontrada no sítio de Milreu, junto a Estoi]
Museu Nacional de Arqueologia, Lisboa

JORGE DE SENA


CABECINHA ROMANA DE MILREU


Esta cabeça evanescente e aguda,
tão doce no seu ar decapitado,
do Império portentoso nada tem:
nos seus olhos vazios não se cruzam línguas,
na sua boca as legiões não marcham,
na curva do nariz não há povos
que foram massacrados e traídos.
É uma doçura que contempla a vida,
sabendo como, se possível, deve
ao pensamento dar certa loucura,
perdendo um pouco, e por instantes só,
a firme frieza da razão tranquila.
É uma virtude sonhadora: o escravo
que a possuía às horas da tristeza
de haver um corpo, a penetrou jamais
além de onde atingia; e quanto ao esposo,
se acaso a fecundou, não pensou nunca
em desviar sobre el' tão longo olhar.
Viveu, morreu, entre colunas, homens,
prados e rios, sombras e colheitas,
e teatros e vindimas, como deusa.
Apenas o não era: o vasto império
que os deuses todos tornou seus, não tinha
um rosto para os deuses. E os humanos,
para que os deuses fossem, emprestavam
o próprio rosto que perdiam. Esta
cabeça evanescente resistiu:
nem deusa, nem mulher, apenas ciência
de que nada nos livra de nós mesmos.

Araraquara, 12/1/1963

(de Metamorfoses, seguidas de Quatro Sonetos de Afrodite Anadiómena, 1963)



[Milreu, 10 de Abril de 2011]


[Estoi, Rua da Barroca, 10 de Abril de 2011]