30.8.06

CEES NOOTEBOOM

CAUDA


Olha para as coisas, vê-as
na sua inocência metafísica
incertas da sua existência.

Lembra-te da conversa
no caramanchão, um Verão nórdico,
hortênsias, a razão de uma rã,
rosas, mascaras.
Incenso sem igreja.

Uma borboleta a esvoaçar na China
rasga uma tempestade na Finlândia.
Alguém o disse; ficaste calado.
Era o que tu já sabias.

Quando é que as pinturas se desfazem
do pintor, quando é que a mesma matéria
se transforma noutra ideia? A bruma da tarde
passava pela relva, afogada a alameda, a fonte
e a casa.

Música, o chapinhar de remos,
alguém acende a luz, alguém
que não acredita na penumbra.
A pergunta sem resposta erra
pela janela.

(tradução de Arie Pos, in Poesia em Lisboa 2000, Casa Fernando Pessoa e PEN Clube Português, 2000)

28.8.06

[outros melros XLIIa]

Ana Marques Gastão - «Escrever é querer descobrir o próprio vulto». Isso basta-lhe?
Ana Hatherly - Sou obrigada a isso.
AMG - Sempre num caminho de instabilidade?
AH - Como o melro que na minha varanda salta pelo jardim num hotel de cinco estrelas: «(...) Flâneur jovial/seu canto/enche de encanto o meu dia/Preciosa ilusão de alegria/como criança saltando à corda/brinca/com as leis do fim». Tenho uma paixão pelos melros.

(excerto de entrevista, in Agulha, revista de cultura # 35 - agosto de 2003)
[outros melros XLI e XLII]

ANA HATHERLY

Tisana 76


Era uma vez um melro de oiro mas pintado de preto. Do seu bico jorrava uma fonte em que se banhavam as grandes cadeiras de sessenta. Quando as filhas das cadeiras cresceram mandaram plantar árvores onde colocaram águias de prata de cujas axilas saíam cabeças de chumbo. Desde esse dia nunca mais pintaram o melro de preto.

(de 463 Tisanas, Quimera editores, 2006)


NUM HOTEL DE CINCO ESTRELAS - I

Em frente à minha varanda
um melro salta pelo jardim
e quando pára, alça a cauda
evitando o viés da instabilidade

Flâneur jovial
seu canto
enche de encanto o meu dia

Preciosa ilusão de alegria
como a criança saltando à corda
brinca
com as leis do fim

(de Itinerários, edições Quasi, 2003)

27.8.06

[Monumento a Antero de Quental - Jardim Antero de Quental, Ponta Delgada / 16 de Agosto de 2006]

ANTERO DE QUENTAL

SOLEMNIA VERBA

Disse ao meu coração: Olha por quantos
Caminhos vãos andámos! Considera
Agora, desta altura, fria e austera,
Os ermos que regaram nossos prantos...

Pó e cinzas, onde houve flor e encantos!
E a noite, onde foi luz a Primavera!
Olha a teus pés o mundo e desespera,
Semeador de sombras e quebrantos!

Porém o coração, feito valente
Na escola da tortura repetida,
E no uso do pensar tornado crente,

Respondeu: Desta altura vejo o Amor!
Viver não foi em vão, se isto é vida,
Nem foi demais o desengano e a dor.


CONTEMPLAÇÃO

Sonho de olhos abertos, caminhando
Não entre as formas já e as aparências,
Mas vendo a face imóvel das essências,
Entre ideias e espíritos pairando...

Que é o mundo ante mim? fumo ondeando,
Visões sem ser, fragmentos de existências...
Uma névoa de enganos e impotências
Sobre vácuo insondável rastejando...

E d'entre a névoa e a sombra universais
Só me chega um murmúrio, feito de ais...
É a queixa, o profundíssimo gemido

Das cousas, que procuram cegamente
Na sua noite e dolorosamente
Outra luz, outro fim só pressentido...

(de Sonetos Completos, 1886)