15.7.06

PEDRO DA SILVEIRA

PEQUENO POEMA INFINITO


A mão sobre o mapa
não viaja,
interroga.
Mas chegar à luz dos teus olhos
é entrar no porto
o navio que deram por perdido.

(de Poemas Ausentes, edição O Mirante, 1999 - colecção Alma Nova)

12.7.06

[Quarta-feira, dia da Alegria]

JOÃO CANDEIAS


2


volvamos o olhar sobre a terra
onde se afaga a tepidez da carne e as lavras
se pede a alma do húmus em seu seio.
porque eu sei que de profundos sulcos
fica o rosto quando percorre arados na paisagem
e céus no infinito, pontos que arrastam
zodíacos de lama, rios de prata morta
peixes que passaram e forma vivos.
transcorrido o alcatrão onde morrem cães
pela madrugada da surpresa chegamos
ao lar de granito. séculos, séculos ternos
de água cultivando a sede

(de Voltei à casa pequena, editorial Diferença, 1999)

11.7.06

[depois de ver A Lula e a Baleia e pela memória de Syd Barret]

PINK FLOYD

Hey You


Hey you, out there in the cold
Getting lonely, getting old
Can you feel me
Hey you, standing in the aisle
With itchy feet and fading smile
Can you feel me
Hey you, don't help them to bury the light
Don't give in without a fight

Hey you, out there on your own
Sitting naked by the phone
Would you touch me
Hey you, with your ear against the wall
Waiting for someone to call out
Would you touch me
Hey you, would you help me to carry the stone
Open your heart, I'm coming home

But it was only fantasy
The wall was too high, as you can see
No matter how he tried he could not break free
And the worms ate into his brain

Hey you, out there on the road
Always doing what you're told
Can you help me
Hey you, out there beyond the wall
Breaking bottles in the hall
Can you help me
Hey you, don't tell me there's no hope at all
Together we stand, divided we fall

(do álbum The Wall, 1979)
GASTÃO CRUZ

METÁFORA


Escolho o silêncio assunto antigo para
falar deste domingo: descrevê-los
o silêncio o domingo será como
falar da escuridão e que metáfora
mais certa se as há certas, para a ínfima
luz própria metafórica do dia

A tua voz então vem como nave
a si mesma sulcar-se, na penumbra
tornando-se, não sei se mais igual
ou mais diversa do escuro sentido
do sentido, o tema interrompendo
do poema: o silêncio o domingo

(in Diversos 9 - Primavera de 2006)

10.7.06

retomada A Grolha
[para uma antologia de bicicletas - 9]

M. ANTÓNIO

(...) Ele que podia ter comprado uma bicicleta, caso tivesse feito economias (o dinheiro dos cigarros, o dinheiro com que ia ver futebol...). Mas, lembra-se, mesmo que as tivesse feito, inútil lhe teria sido o sacrifício, pois nunca conseguira equilibrar-se em duas rodas. Era mesmo um rapaz de pouca sorte... Desde a escola que tinha pouca sorte - e perante o «écran» das pálpebras corridas passam, iluminadas, imagens probatórias da sua pouca sorte...
Deixa-se estar de olhos fechados. Era um processo de pensar sem dificuldade. Assim, não se cansava. Por imagens, apareciam-lhe os pensamentos, desenvolviam-se e apontavam-lhe soluções. Sem ele se esforçar. Agora, aparecem rodas, a principio paradas e pequenas, que aumentam de tamanho e se põem em movimento. São rodas ágeis, elegantes, que se ligam (agora o vê) aos pares. São bicicletas, com rodas brilhantes, e faíscam. Têm pneus largos, vermelhos. Mas andam sozinhas como se tivessem cérebro e olhos, fazem curvas, contra-curvas, empinam-se como cavalos. Depois vão desaparecendo e só fica uma que aumenta de tamanho e - como nos filmes, quando um comboio, ou carro, ou bicicleta, se aproxima da plateia - sobre a qual se destaca um vulto que inicialmente vê inteiro e não reconhece, de que depois vê só meio-corpo, depois só até o rosto, o rosto em que Beto vê a sua cara, segura, radiante, sorrindo um sorriso igual ao que se desfaz quando abre os olhos, confuso, para os ladrilhos do chão. Levanta-se, faz o gesto de quem procura a pasta inexistente e, imóvel, percorre-lhe o espírito, ou o cérebro, ou o coração, ou o corpo, esta ideia, ou vibração, ou desejo, ou estremecimento: «- Se ao menos soubesse andar de bicicleta...»

(excerto de Crónica da Cidade Estranha, Agência-Geral do Ultramar, 1964 - colecção Unidade)

9.7.06

JOÃO CANDEIAS

este hemisfério

I


quando o homem se senta na sua
cadeira de para quê e escreve
uma labareda inunda de chamas
o apenas lume que parece.
e dentro delas há um corpo eros
que se derrama na efabulação do mito
de tanto ser e da verdade que parece.
pouco a pouco como as orbitas do tempo
se vão construindo os pesadelos sonoros:
algumas falas que de dia se insinuam
de noite fingem dormir atormentadas.
por isso minha avó não teve úlceras
duodenais nem flatos coronários.
ela não tinha a moral inventada
dos párias que agora a têm.
e eros dormia um sono de aguadas
azuis e telas francas.
no ventre um báratro mistério
esguio azougue e invasões de mel.
telhas que se desmoronavam e medravam
quando a ressurreição da fé perdida
gerou um pai que foi o meu


II

retomo o labirinto das adagas
de seu fio uma distância inerme;
como espelhos medem a errância
do gesto, enquanto a certeza divaga
se silaba numa fractura de segundos
destruídos.
passam à janela algumas hordas
límpidas de flâmulas coruscantes
e gritam o sangue cardeal das artérias
que dão o ponto norte e o pólo oposto

(de Ignição Ozone, espiral, 1984)