11.8.07

MIGUEL FLÓRIAN

ESTA LÍNEA QUE PARECE ALEJARSE



Esta línea que parece alejarse
no es el mar,
ni el corazón tampoco.


La brisa de la noche,
en el estío,
a veces nos devuelve
sílabas semejantes,
parecidas fronteras.


El mar abandona en el alma
guijarros, caracolas,
palabras como éstas

(pero más verdaderas)


(de Anteo, Colección de Poesía "Juan Ramón Jiménez", 1994)



ESTA LINHA QUE PARECE AFASTAR-SE

Esta linha que parece afastar-se
não é o mar,
nem tão pouco o coração.


A brisa da noite,
no estio,
por vezes devolve-nos
sílabas semelhantes,
fronteiras parecidas.


O mar abandona na alma
seixos, búzios,
palavras como estas

(porém mais verdadeiras)



(tradução minha)

10.8.07

HELGA MOREIRA



É hora de endurecer palavras
num regime de tempo
Hora de entardecer agonias
e recrutar pântanos de verdade


Hora de silêncios consultados
Hora breve em tempo demorado
Hora de já é tempo sem tempo de espera


Hora de fragilidade quebrada


É hora das horas que não se viveram


(de Cantos de Silêncio, 1978)

9.8.07

[Havemos de ser úteis como mortos há muito]



JOÃO VÁRIO
Pseudónimo de João Manuel Varela, que utilizou também os pseudónimos Timóteo Tio Tiofe e G. T. Didial. Nasceu em 1937, no Mindelo, em Cabo Verde.
Uma síntese da sua Vida e Obra pode ser encontrada aqui.
Morreu na madrugada de ontem, na sua cidade natal.


CANTO TERCEIRO

E assim rodamos de objecto em objecto
Como seres concebidos no alto inverno,
Tal o círculo das coisas e as coisas do seu tempo,
Porque um homem pode matar-se,
E, se nos matamos, porque seres
Concebidos no alto inverno,
Sem a farinha deste ano e esta pausa aguda
(Oh tal lassidão, o decúbito, a ansiedade!),
Podemos ceder ao tempo e seu tempo o tremor
E a vaidade que não exigem de objecto
Em objecto, qual tempo que não exige
Esse giro fulminante e essa pausa aguda,
Tal, se nos matamos, há tal coisa de verão
Para citar e criamos mais depressa
E cedo rodamos de objecto em objecto
E não o negam os que vêm no verão.
Que vos dizíamos nós?
Nessa altura da vida
Tivemos medo à sabedoria.
(Sob seu sumário prestígio, a alma, lembrança
E ela, decide
Sua necessidade de privilégio, de fruta e algo
Que omitimos.
E não saberemos que é impossível, impossível.
Ao movimento narrado de ter a vida,
Somos sem deuses, e vagos.
Oh o que amáramos
Não fosse a unidade
A que a alma nos força!
A noção, à mão, o cânone, à porta,
E o valor do rosto quando dorme:
Facto, ode ou cárie
Que comemoram a longevidade).
E eis que as casas se enchem dos ossos
Que perdemos, medindo a terra
Com os crânios que a vida perde porque é outra,
E o repouso das paredes que vão cegando
Crânio e terra, família e ambos. Tal os
Ossos arrefecem sem a chuva, como ela,
E as terra que os cobre nos cobre menos
Ou abre do nosso lado outra terra vizinha
Da terra que vamos dando com os ossos,
A chuva, o cobri-la hoje, terra
Ou chuva que outra coisa não cobriu, ontem.
Quando morríamos, ou cobre hoje, quando
O suicídio nos acode
E arrefecemos com ela, diz-se,
E outra vítima em nós, assim e alheia.
E em toda a parte a urna é a mesma,
E a língua que enche o túmulo
É o tumulto que persegue as crianças
Sobre a terra dos pais, a pá maior e a loucura
Tal espera outras trevas para a profecia,
O dogma, o granizo que desabam sobre o soro
Dos rostos, pasmos óbvios sem o horror dos discípulos,
A versão de seu deus e nossa inocência de adultos,
Adobe ou adubo que a boca arrasta
Na saliva para a hóstia povoada
Que não o tempo, mas seu tempo,
Doeu ou deu no peito largo, chão,
Não cristão, que bebe e morde
Da água desta celha, veste desta roupa na corda
E esfrega a terra deste mundo
Sobre seu corpo de pobre, como óleo,
(Só quando imutáveis mortos nos legássemos,
Nos não aterre essa capitulação
Que amamos proibir. Com efeito,
O que blasfemamos é inominado. Entanto,
Se de símbolos, e lúgubres,
Os pactos tecemos com a alma,
Tê-la é tão só a dimensão sua
E alheá-la, reduzida).
E tudo que a nós, presságio,
Pasmos, perdulário instinto,
Regressa,
Circunscreve-nos à tradição
Aleatória
De em pura fatalidade concluir a alma.

(Eis a vítima, nosso saco de gâmetas e de enzimas,
Com agosto arrastando vidro e pedra,
Coentro e alho pelas portas dos vivos,
Tal cadáver ou mó desta ternura
Com que outrora arávamos sua estéril vida
De mês nosso estéril mês de vida, às portas das vítimas,
Tal a profissão menor, as gengivas
E as jovens da cidade falando de Plotino).

Para a culpa que em nós se inconstitui
Absolve-nos, legando-nos
A desespero menos fortuito
Que exaustão ou remorso. Contudo,
Nem de tão sepultos
Nos logramos menos vulneráveis.
O falso alarme, o lucro, a ofensa,
O opróbrio, a tolerância, a escolha,
Pecadores apenas e tal como pecadores,
Coisas que repetíramos, coisas que ficaram,
Coisas de ostentação e de verbo alto,
Coisas do humor, da páscoa, públicas coisas,
E coisas de primavera transacta, de semana santa,
Coisas porque nos matamos ao pedido do óbulo,
E coisa de redacção privada.
Qual vantagem ou cumplicidade ou acordo póstumo,
À entrada da ilha, no principio da igreja, à hora
De sair com os utensílios para a prece,
Para a preguiça, para a carícia e para a gratidão
Na revolta e no massacre reflectimos,
A vantagem, a cumplicidade, o hábito, olvidados
Ou amando os únicos rostos, indigência como fruto
Que ao seu sentido coube, tal
A luxúria, a nudez, o vexame, a volúpia,
O habito, o tédio, a monotonia, a inveja,
O tédio, o mau humor, o hábito, o tédio,
A vontade de viver e o temor de morrer,
E a vantagem, a cumplicidade e o acordo póstumo. Tal
O vício é um novo presente para os crimes nossos
E sob a alegoria da tarde e a amizade do meio-dia,
Impetuosíssimos, discorremos sobre a família,
As horas de sono e os meses de gestação
E de trabalho árduo, tal sua paz,
Paz certa, paz outra, paz amplíssima e paz grande.

Trata-se do ócio, da diferença, do baptismo, ó homens.

(Tudo chegou com o engano, a data do parto,
A primeira fome, o engano,
A data do parto é um mais triste coito).

Pagãos votivos e, de votivos, concussos,
O que restituímos de conclusão e apocalipse
Não assimila na razão e no desígnio
A desfigura que nos sobrevive - crime
Ou tutela do pão que a reminiscência promove.
Pois que o tempo que nos traímos
Não supõe corpos supérfluos,
O conhecimento é a só mesma dor
Com que nosso próprio abandono confundimos.
Sabemos, pois, que o que falta é um pouco de utilidade.
A réplica, o inverno imediato, a escuridão alta
E os primeiros surtos do favor, os meses e os anos
De setembro brusco, e as últimas mesas e o vinho
Chegando com a estupefacção, a impotência,
E a réplica, o inverno imediato e a escuridão alta.

Porque de ser modo ou tal tempo ou tal
Celebridade, a vergonha, o desprezo, a falência,
A chave do regresso e a opressão do regresso,
Desde regresso e desde regressar, regressando
(A solidão do outono e a fatalidade do outono,
Outono ou outono, outono sempre,
Outono se assemelhando, outono semelhante,
A solidão de ter e de não ter feito,
Sendo mais nada em nada, ou nada,
E tempo de considerar que morremos),
Porque de ser modo ou tal tempo ou tal
Celebridade, eis que para cima do robusto vaso do sangue
Sangue em si próprio e acima de outro sangue,
Elevamos, a meio do casto outono, a cabeça sonora.
A recusa, o bem da luta, o morto e seu morto.
Tal os mortos nossos, nem sempre
Mortos sempre ou mortos connosco ou com morte
Por que morreram. Tal um pouco são
Da hospitalidade que o corpo inclina para a sombra
Que o usa, ao meio-dia, o gozo, a arma,
E a terra e as varizes que os usam. Mortìssimamente
Mortos.

Pois sem beber é da atenção e do alarme que falamos,
Sem eles bebendo, porque menos bebem,
Ao fundo do diário sangue bebendo, porque há os que menos bebem,
Tal necessidade e fecho ou desnecessidade e desfecho.
E tal é o sangue no fundo do sangue, seu sangue por dois,
Sangue outro que duplo, sangue com advento do sangue,
Ou sangue que esquecemos de beber, bebendo.

Quando junho começa e se fala
De mutilações e de outubro,
O homem o domingo recebe
Como quem mutilações e domingo
Reflecte, pois a alma se lembra de junho,
E está alta, menos alta, através de estar-se lembrando,
Outubro lembrando.

É, pois, um outro soleníssimo inverno. Inverno e sua corda
E cabaz de nos observar com a mão, de nos tomar
Por outra vida, sua vida de inverno e sua
Inverníssima vida, e de inverno,
De inverno ouvindo. E
Homens destes tempos, sem a excelência deles,
Homens precários, lassos, mais,
Enquanto seguíamos, baços, falsos, entre estevas e o século,
De longe seguíamos a mulher aguardando
Seu sexto filho,
O choro, o vento e a venda em seu ventre,
Ventre seguindo de longe, ventre ou ventre, ventre
Sempre, ventre a esmo.

(Por certo, a planta dos pés de um homem
De nada vale neste mundo. Pois
Que são o seu rectângulo de ruído,
Sua tensão de carne, agosto, o camelo
E o fundo da agulha, como se diz?)

Tudo conhecemos agora que o sol cai e é a simples razão de cair
E hesitar connosco. O sol, sem de ser sol tal,
Sol tanto, sol aquele do solo, do solstício, do sono,
Do desenvolvimento, de sol tal.

Ah dignidade! acreditamos valores de abominação
E de dezembro.
Tempo grande e oramos. Aula e beijo,
E ninguém precipita sua sesta de crente,
E sabemos que vamos cumprindo como fidelidade
O que a fidelidade com alta sapiência cumpriria.
E tal é o assunto.

Que preceito, pois, que celeridade ou feitio
Que frio será, homem, tua totalidade?

Não insistimos mais sobre estarmos tristes e morrermos.
A herança, o jogo, o frenesi, o gesto,
O apetite, o negocio, apetite
De destruição e de vantagem,
De continuar e de sobreviver.
Também o triunfo, o prazer, o prazo de morrer
E de ganhar, de acabar e de recomeçar,
E o gozo da obediência. Tal
A paz. Paz e mito numeroso
A mesa desdobrando sobre a notícia, o sarcasmo,
O dolo ao sétimo dia de junho,
Mês da impaciência e de canto triste, mês
Com verão e da sua teoria do verão e do tempo,
Mês velocíssimo.
A jornada, o aniversario, o arrependimento.
Tal o alimento por baixo do alimento,
O alimento acima do alimento. Alimentìssimamente.
Festa e espelho. A recepção
O sucesso, o tempo. Tempo grande.
Tal há os que menos bebem, porque menos bebem, porque menos bebem,
Sem eles bebendo, ou bebendo, tal
Não há imortalidade
E não podemos pagar a reminiscência.
Porque pasmos e hábitos vacilam em nós
O limite e as lembranças.
E enquanto instituímos os signos
E nos louvamos nos mortos imortais,
A alma, génese e ela,
Decide sua necessidade de privilégio, de fruta e algo
Que omitimos. Tal
Memória ou memórias,
Memórias como salário
Ou cântaros de sacrifício,
No signo dos gémeos, ao vigésimo terceiro ano
Do principio do signo,
Humanas razões de censura e audiência,
E o auxilio, o prazo grande, a possibilidade
Porque da morte nos ficou esse dom
De a pensarmos como coisa sua,
Coisa por que a pensamos e acaso não a exprime
Porque a designamos.

Há muito passado no estar aqui com o tempo.
Fim e reconhecimento, e não sofrendo mais do que o tempo concede,
Fim de novo e reconhecimento de novo,
E tudo é crime, ou crime sempre, crime ou crime,
Criminosìssimamente crime,
Quando arriscamos a intensidade, comemorando.
Aumento a festa, ou cilício, e tempo de cair a tempo de seguir,
Tempo de mal cair e tempo de mal seguir,
Oh amamos tanto, amamos tanto estar aqui com o tempo
E sabendo que há nisso pouco passado.
Porque maiores que os desígnios da medida e, divididos
Em dois por eles, com eles indo, se por eles
Ganhamos o tempo, pedimos a forma mais fácil
De indagar que vamos morrer e, um dia, se
O tempo for deles e, a memória, de outros,
Havemos de ser úteis como mortos há muito,
Sem que a causa, o delírio, a designação,
O julgamento nossa medida abandonem,
Dividida em duas por eles, e ganhando constância.

Depois, depois faremos ou fará o tempo, por sua vez,
Aquele blasfemíssimo comentário,
E então consta que amámos.

(de Exemplo Geral, 1966 - in Líricas Portuguesas – quarta série, selecção prefácio e notas de António Ramos Rosa, Portugália editora, 1969)

5.8.07

JORGE VELHOTE

A vertigem das rosas e da luz


ao Egito Gonçalves


Agora o mar é uma grade na clausura do coração, uma planície
minuciosa, uma essência atando os vidros contra o frio,
uma caligrafia gratificando os odores da chuva e da pele, que escorrem no olhar.

Agora as aves descarnam os últimos rostos na barreira do silêncio,
sobre a ilha infindável da memória chega a doçura lenta das tuas mãos,
a vertigem das rosas e da luz, as palavras na sombra mais luminosa dos regatos
fosforescentes de relâmpagos e serpente.

O dia é uma ferida nua, numa labareda de conchas, é pura a carne das pedras,
às vezes o canto dos rouxinóis pára de súbito, nós calámo-nos mais cegos, junto à
quietude da água e da noite, dos muros e do musgo, na melodiosa melancolia da
memória e da ironia.

Que fazer diante do imenso abismo senão amar.

(in Saudade - revista de poesia, n.º 1 / Dezembro de 2001)