6.4.11

JOSÉ LUIZ TAVARES


11.


Há um tesouro que não enferruja
nas costas da tua mão; embora
a pele entregue às sevícias do curtume.

Deste lado, dimanações do que poderiam
ter sido recônditas juras num domingo
de sinos e renúncia. Revigoram-te
como o riso indubitável dos jovens laureados
cujos crânios ungiste com a erva nova
de setembro, por sob o olhar de um deus menor.

Mas porque já não posso louvar essas velhas
divindades; porque o fuzilante vento apagou
os mínimos sinais dispostos sobre a terra
e o bordão dos prodígios já nenhuma água
traz ao cimo das escarpas;

porque silencioso necrotério a sala onde
arquejante me ensinaste as primeiras letras
(tu que com o sofrimento mantinhas um comércio
astucioso) e ignaros vinham para uma carta

ou um conselho; mas sobretudo porque o que fazia
humano este lugar – velhos de conversa lenta
reaprendendo de novo a leveza da infância;
quatro ou cinco árvores explodindo no ar seco do verão –
soterrou-o um tempo malfazejo;

ou porque talvez tenha razão o fernandes Jorge
e regressar não seja verbo que se conjugue,
desde essa orla onde tudo é demasiadamente
estrangeiro, esquissos da impossível pátria
lavro onde de novo me erguesses
para a mortal vocação de ser homem.


(de Paraíso apagado por um trovão, 3ª edição: US edições, 2010 – 1ª edição de 2003)

5.4.11

JOSÉ AFONSO


Não é meu bem


A cama é boa para dormir
- Não é meu bem
A corda é boa para subir
- Não é meu bem
A morte é santa para cumprir
- Não é meu bem
A louça é cara para partir
- Não é meu bem
A cal é branca para encobrir
- Não é meu bem
A banca é boa para falir
- Não é meu bem
A vida é dura para resistir
- Não é meu bem
A porta é boa para se abrir
- Não é meu bem


(do álbum Fura Fura, 1979)

3.4.11

EDIMILSON DE ALMEIDA PEREIRA


HISTÓRIA ANTI-NATURAL

HOMEM BALA


Um emprego não basta
para sanar as dívidas.
Quanto mais ajusto
tanto preciso ajuntar.
Quando paro, tudo
em mim trabalha.
E já uma outra dívida,
crescendo no sujo
da antiga, se anuncia.
Mal desço na praça
um braço me cobra,
outros me olham.
Tudo em mim se rala.
O que sobra gera
outra promissória.

HOMEM GOL

Falhar é um direito,
em meu caso, um caos.
Se me ausento do lance
é como se acabasse
o gás para o almoço.
Cada boca tem a fome
do juízo final até que o
juiz apite: acabou.
O jogo agora se disputa
mesmo sem partida.
Não há dono do time,
bola também não há.
A tática minha e sua
é atacar na defensiva.

HOMEM MOSCA

Para lições de leveza
nada mais que o corpo.
Se possível um anúncio
em que a sorte nos
convide à sua fazenda.
Para se manter no ar
é preciso músculos
e alguma tolerância.
Nossa natureza é pedra,
se muito, espuma.
Mas não será absurdo
flutuar na palavra
uma vez e outras.

HOMEM RÃ

O início do mergulho
está na ausência da água.
Quando tudo é esgoto
como achar o que se busca:
um braço e um dejeto
são uma só carcaça.
Recuperamos as coisas
em partes e com isso
a luta se reapresenta.
Num braço o corpo,
num chassi a máquina
que o precipitou no rio.
Mergulhar é dar início
a um quebra-cabeças.

HOMEM NU

A mão que me devassa
não colhe senão
fiascos de um tecido.
Há muito me imprimo
em formas anuladas.
As que têm medo
e, sendo muitas, vão
sozinhas ao labirinto.
Onde não há marcas
vigem meus dedos.
O nome que ostento
é um clã de anônimos
associados & filhos.

(in Oiro de Minas a nova poesia das Gerais, selecção de Prisca Agustoni, Ardósia, 2007 - colecção Pasárgada)