1.7.11

[faz hoje 30 anos que morreu um dos maiores Escritores/Poetas portugueses do Séc. XX]


CARLOS DE OLIVEIRA


Noite de verão


I

De súbito, a lua japonesa
desenha na janela
as três colinas dum hai-kai;
e vê-se então
que a sua luz, o círculo
cortado ao meio
no horizonte de cimento,
basta para tornar o ar oxidado
quase cor de rosa;
assim se aprende,
ao anoitecer, como o verão
escreve cidades mais legíveis;
embora breves; sobre
alicerces que flutuam
em torno do leitor nocturno,
e talvez a imagem
do meio círculo que falta
à lua, no horizonte.


II

Tágides trazendo,
do alto mar à água doce,
a escama, o fósforo, da espuma;
e o sal saturado de vento
a explodir no rio,
nas suas rugas;
com a luz eléctrica baixando
às páginas fac-similadas
do pelicano para a esquerda:
círculo completo
que as centrais, as redes,
mantêm tenso e branco
como a lua; já reconstituída;
a desprender-se do horizonte;
tágides, por fim sobre cavalos
claros; nuas; inventando
um som diferente
aos decassílabos.


III

O electrocardiograma lido
como um horóscopo;
o sândalo; as colunas de ouro;
sem esquecer o lírio mosto
a abrir-se, a exalação
do cedro; ou antes:
o amor relido noutros corpos;
no gráfico tão simples,
onde a vertigem surge
com a lentidão quadriculada
dos erros, dos desvios: mais nitidamente
que um bólido fotografado
em Indianápolis; enfim,
no cântico dos cânticos,
há um corpo a corromper-se;
estático; só de se expor ao ar,
a agulha mede-lhe o declínio
a cada pulsação.


IV

Uma criança perde-se
nas dunas; na aridez;
sem decidir
se as nuvens são também
de areia; mas em Roncesvales, no tumulto
das réplicas furiosas; quando a névoa
prolonga pelos despenhadeiros
tubas de corno, gritos;
a linguagem é sem dúvida
uma bruma áspera; silábica;
sobre o suor dos homens,
dos cavalos; quanto às nuvens,
examinando-as bem, parecem
doutra consistência:
areia, talvez não; embora a areia
possa evaporar-se e o vento; sabe-se lá;
a use para dourar as nuvens
ou torná-las mais duras.


V

No ritmo cardíaco
o desdobramento do primeiro
ruído não se acentuou;
mas como tudo pulsa,
o cansaço geral; a erosão;
prossegue ao ritmo da noite;
cada vez mais lento, o ar
desce nos brônquios; este
poema sufocado
respira apenas as sílabas
precisas; digitalis;
digital: o dedo aponta
o coração; a ponta do estilete
apoiada no peito;
ou o cano ósseo do revólver;
acentuou-se, claro; mas,
no meio céu, a lua sobe
sem desbobar o seu ruído.


VI

Leitura organizada
nos três alvéolos essenciais;
que são, o quê? só conhecemos
este número; tridente
dum mar obsessivo, com a terra
ao centro da forquilha,
entre o passado e o futuro:
espuma num e noutro flanco;
as três hastes soltas
do signo romano; ou o algarismo
árabe: as setas dirigindo-se
à esquerda; sempre o coração;
unidas na sua dupla curva;
apenas isto; e uma palavra
de que sabemos pouco: alvéolos,
onde se inserem, nos esperam
insectos; dentes; várias formas
de sermos devorados.


VII

Quanto às paredes impermeáveis,
difícil ler cá fora
o grito entre a pergunta e a resposta;
do nascente, do ocaso,
sobem marés; ao mesmo tempo;
num azul vagaroso que a ascensão
dilui pelas praias da lua,
agora no seu ponto mais alto;
imóvel; calculando os riscos da descida;
difícil ler a densidade
que o silêncio impõe a um corpo
donde se tira o sono
por seringas lentas; gota a gota;
onde se escava a gruta; ou então
se encontra a pedra renitente
às brocas, ao seu aço;
enquanto o verão reescreve a lua
longe do horizonte.


VIII

Hipótese possível:
quanto maior for a distância
mais frágil é o astro;
segunda hipótese, provável:
a atmosfera sabe
que refractar estrelas é um jogo; e ganha-o;
desta deduz-se uma terceira:
blocos de pó irradiante,
endurecidos pelo vácuo,
sentem a sua luz estilhaçar-se
perto de nós; o interruptor,
como a palavra diz,
interrompe a leitura; hipótese:
provoca um frémito na água
da barragem; talvez verificável;
e outra ainda, quase sem sentido:
a sombra; a lâmpada apagada;
a transformar-se em sono.


(excerto de Sub Specie Mortis, de Entre Duas Memórias, 1971, in Trabalho Poético, 3ª edição: livraria Sá da Costa editora, 1998)

29.6.11

ANTÓNIO REBORDÃO NAVARRO


POST-SCRIPTUM

Se a solidão nos rói os ossos,
se temos de negar
e é forçoso viver
entre paredes que não crescem nem mingam,
caminhar e sorrir e criar com esforço
urgentes intervalos para a dor,
em papéis sem mistério
faremos nossa história
tão simples como o bom e o mau tempo.
Entretanto,
falamos, discutimos,
cuspimos na paisagem,
desafiamos a tristeza
e mordemos o corpo da alegria.

(Não sei se tu me vês
quando a insónia te envia
anjos de roxos olhos
que te impelem, atraem
e, súbito, te deixam.

Não quero dizer que te ouço cantar,
porque não ouço,
quando os muros se apertam,
quando encho grandes dias
de silêncio e mais nada.)

Escrevo-te estas linhas de verdade
porque sei que não choras
quando a vida to ordena,
porque sei que és livre
a desprezares
a gordura dos dias.

(Não te dou minhas mãos,
sento-me contigo à mesa que puseste,
que sempre pões em qualquer sítio,
— nos barcos, nos cafés, onde tu estás —
tua ternura é uma longa mesa
onde se sentam todos os vagabundos.)

Dou-te vinte séculos de fome sobre o mundo,
vários milhões de cruzes e cadáveres nos campos,
inumeráveis dramas conjugais,
pavores de toda a espécie
e o esforço que minha mãe faz para não chorar.

Só te envio
o que guardei das quedas mais terríveis,
o olhar para trás, o reter uma lágrima,
o ter trazido na minha mão direita
o frio que cobria a mão de meu pai morto.

Não te falo de coisas ociosas
que nunca possuiremos,
não te falo de roteiros fingidos
nem te envio palavras pelo vento.

Não te peço para me dares a paz
que nunca tive
nem mesmo a que julgava ter e me levaste.

Não te ofereço o único e perfeito
lugar do mundo aonde
talvez ainda exista a felicidade,
mas junto as minhas ruas
de crianças, eléctricos e caixotes de lixo
às tuas ruas de ladrões, prostitutas,
máquinas e polícias.

Mais livre
(ou menos livre?)
do que dantes,
mais sereno
no entanto,
embora
a garganta
se encha
de acerados punhais
e uma ruga
recente
denuncie
que, às vezes,
num só instante
o mundo cresce
mais do que
em milénios,
abro todas as portas
e todas as janelas,
abro todas as veias
ao teu sangue,
vou contigo
por um caminho
por demais luminoso.


(de Aqui e Agora, 1961)