15.2.18


TATIANA FAIA


mágoa sem objecto

na casa as mulheres rasgavam
para panos os lençóis velhos
aproveitavam as sobras
costuravam juntas
reclamavam poderes oraculares
que nunca tinham tido
saíam muito pouco

a mais velha às escondidas
fumava o cachimbo de um marido
embarcadiço mas sobre ela
ninguém se ia dar ao trabalho de escrever
a rime of an ancient mariner
não importava quantas vezes
acendesse aquele cachimbo

a única perenidade que podia
ter alcançado residia em que
alguém dela tivesse feito
uma estátua em pedra
e séculos depois alguns pescadores
a tirassem do mar como
àquela vénus em rodes

elas deviam ter sido as sereias
algum homem com risco de vida
tinha o dever de se ter feito atar
ao mastro de um navio qualquer
vedar com cera os ouvidos dos seus marinheiros
só pelo puro prazer de as ouvir cantar

mas para efeitos daquele enredo
elas não puderam
ser mais do que um bando
de euricleias sem história excepto
pelo hábito reduzido a inofensivo
de chorar sobre cicatrizes


(de teatro de rua, do lado esquerdo, 2013)

12.2.18


CATARINA SANTIAGO COSTA


Haverá quem queira roer-te a líbido
só porque o teu sexo tem a forma de um grão de café
com molusco dentro. Mas tu
mantém-te livre sempre.
E o que é ser livre senão cultivar e colher
aquilo que nos hidrata e nutre
dos alicerces à água-furtada.

Há um homem no bairro que me olha com os dentes todos,
um homem pequeno com um filho mais pequeno que ele
por sua vez pouco maior que a minha pequena,
um homem com um cão corpulento
e uma dentição tão feroz como a dele.

Um dia esse homem vai agarrar-me
seviciar-me, apostado que está em
amestrar-me, tornar-me servil
– é isso que temo e me diferencia
da vizinhança masculina.

Está tudo bem por ora:
cheguei sã e salva a casa,
a porta, o cofre-forte e o frigorífico estão intactos
os iogurtes: frescos e dentro do prazo
as plantas desabrocham
as abelhas polinizam lá fora.
Tudo está em ordem.


(de Filha Febril, Douda Correria, 2017)