18.6.05

JOSÉ CRAVEIRINHA

PUREZA


Nós
jamais ficamos lívidos.
E nascemos tão simples
que o rubor em nossos rostos
não tem sentido
não é possível
nem existe.

É uma fonte de aves o nosso canto
e o grito de capataz
não é sonho inventado
mas existe na manhã cósmica dos cargueiros atracados
e guindastes de duzentas e cinquenta toneladas.

Lívidos
nascem os outros
e o rubor em nossos rostos
não tem sentido nem existe.
Mas o permanente sentido de angústia
nossos corações de negros
faz cada vez mais puros.

(da selecção de poemas que acompanha o texto de Jorge de Sena em Poesia de Moçambique I, Minerva Central, 1972; publicado originalmente em A Voz de Moçambique de 31 de Março de 1962)

17.6.05

Tal como no ano passado, só me lembrei do aniversário do meu blog quando vi toda a gente a dar os parabéns ao Aviz.
É que Francisco José Viegas foi a primeira pessoa a linkar esta humilde página de distribuição de poesia.

Parabéns e Obrigado.

16.6.05

[post anacrónico]

JOSÉ TOLENTINO MENDONÇA

Hotel Inglês


Aprendo muito quando o verão acaba
para lá das coisas habituais
o sinal ardente, primitivo:
uma espécie de abandono sem socorro
diferente da rendição

apercebo-me do frio pela primeira vez
no vento, na água
alugamos bicicletas para chegar à costa
à procura do que resta
uma estação
onde as imagens não naufraguem
a cada instante

também eu me recuso a dizer apenas
o que pode ser dito

(de A que Distância Deixaste o Coração, 1998)

13.6.05

[outros melros XXVI - em jeito de epitáfio]

EUGÉNIO DE ANDRADE

ELOGIO DA NEVE

As primeiras palavras trazem ao espaço
da página a neve e o melro:
o melro azul
canta nos ramos da neve.
Talvez o tenha ouvido cantar
em sonhos, ou num poema qualquer,
mas ia jurar
que foi no castanheiro do quintal.
Não faz nenhum sentido,
mas às vezes o absurdo entra-nos
pela porta. O melro
cantava na neve - era verão.

(de Ofício de Paciência, 1994)