11.1.19

T. S. ELIOT


IV

Descendo a pomba corta o ar
Com chama de incandescente terror
Cujas línguas anunciam
A única remissão do pecado e do erro.
A única esperança, ou então desespero
Reside na escolha da pira ou da pira –
Para sermos redimidos do fogo pelo fogo.

Quem, então, inventou o tormento? O amor.
O amor é o Nome mal conhecido
Atrás das mãos que teceram
A intolerável camisa de chamas
Que o poder humano não pode arrancar.
Nós apenas vivemos, apenas suspiramos
Consumidos pelo fogo ou pelo fogo.


(da sequência «Little Gidding», in Quatro Quartetos, tradução de Maria Amélia Neto, Edições Ática, 1983 / original de Four Quartets, 1943)

6.1.19


JORGE DE LIMA


O GRANDE CIRCO MÍSTICO

O médico de câmara da imperatriz Teresa – Frederico Knieps resolveu que seu filho também fosse médico,
mas o rapaz fazendo relações com a equilibrista Agnes,
com ela se casou, fundando a dinastia de circo Knieps
de que tanto se tem ocupado a imprensa.
Charlote, filha de Frederico, se casou com o clown,
de que nasceram Marie e Oto.
E Oto se casou com Lily Braun a grande deslocadora
que tinha no ventre um santo tatuado.
A filha de Lily Braun – a tatuada no ventre
quis entrar para um convento,
mas Oto Frederico Knieps não atendeu,
e Margarete continuou a dinastia do circo
de que tanto se tem ocupado a imprensa.
Então, Margarete tatuou o corpo
sofrendo muito por amor de Deus,
pois gravou em sua pele rósea
a Via-Sacra do Senhor dos Passos.
E nenhum tigre a ofendeu jamais;
e o leão Nero que já havia comido dois ventríloquos,
quando ela entrava nua pela jaula a dentro,
chorava como um recém-nascido.
Seu esposo – o trapezista Ludwig – nunca mais a pôde amar,
pois as gravuras sagradas afastavam
a pele dela o desejo dele.
Então, o boxeur Rudolf que era ateu
e era homem fera derrubou Margarete e a violou.
Quando acabou, o ateu se converteu, morreu.
Margarete pariu duas meninas que são o prodígio do Grande Circo Knieps.
Mas o maior milagre são as suas virgindades
em que os banqueiros e os homens de monóculo têm esbarrado;
são as suas levitações que a platéia pensa ser truque;
é a sua pureza em que ninguém acredita;
são as suas mágicas que os simples dizem que há o diabo;
mas as crianças crêem nelas, são seus fiéis, seus amigos, seus devotos.
Marie e Helene se apresentam nuas,
dançam no arame e deslocam de tal forma os membros
que parece que os membros não são delas.
A platéia bisa coxas, bisa seios, bisa sovacos.
Marie e Helene se repartem todas,
se distribuem pelos homens cínicos,
mas ninguém vê as almas que elas conservam puras.
E quando atiram os membros para a visão dos homens,
atiram as almas para a visão de Deus.
Com a verdadeira história do grande circo Knieps
muito pouco se tem ocupado a imprensa.

(de A Túnica Inconsútil, 1938)