15.3.12


ANA HATHERLY


Falo do que é físico

Falo do que é físico porque não tenho outra realidade.
Falo do corpo
do mundo
do que ainda não sabemos e chamamos divino.

Falo do que é físico
porque tudo o que é real tem corpo e ocupa espaço.

Falo disso.
Falo do que existe
e tudo é tanto que nunca chega o tempo
                             nunca chega o fôlego.

Vejo até à asfixia
gente, coisas, o invisível.

Tudo me faz estar em permanente frémito
sair para a rua de noite
e andar até cair de cansaço.
Pensando em tudo isso
extremamente sobreposto
como se uma grande dor não anulasse outra
como se fosse possível
pensar em mais de uma coisa de uma só vez
sentindo o simultâneo impossível
querendo abranger
a incontrolável voracidade dentro de tudo.

Corro por mim fora
como um grande atleta
campeão de barreiras e distâncias invencíveis
tentando vencer
mas tudo é enorme e intrincado
tudo em mim são olhos vigilantes
sem jamais pálpebra.

Mas tudo isso não chega.
Tudo é enorme
e morro tão depressa


(de A Idade da Escrita, edições Tema, 1998)

13.3.12


PAULO DA COSTA DOMINGOS


Inúteis. O desenho: uns tomam-no de suas hortas
nas traseiras; outros, do encavalitado de ares
condicionados; além atiram comida das janelas.
Gatos esperam que nunca o deus do trabalho e
das férias lhes feche a torneira desse maná, inúteis.
Como, aliás, devem ser os versos, espreguiçados
ao longo de um muro, miticamente branco por
baixo do musgo. Que por detrás de um veículo
topo de gama acabamos sempre por encontrar
nabiças, um seu familiar que não limpou ainda
a lama das botas, e traz da encosta uma gritaria
impossível de miúdos maltrapilhos e farinha no
sabugo. Não fora a destreza dos gatos, e outro galo
cantaria. E eu, perplexo na barafunda de opiniões
e de soslaios que me fixam, preparo meu salto
antes que, piegas, me abandone a poesia, versos
inúteis.


(de Nas alturas, frenesi, 2006)