3.2.06

JORGE DE SENA

ALGUNS POETAS DE 1958
(excerto)

Eu não costumo - e creio que só abri excepção, em vinte anos de vida literária, uma duas vezes - falar ou escrever de poetas que sejam meus amigos pessoais. Não é que para mim, ao contrário do que sucede habitualmente na crítica portuguesa, a amizade seja inibitória, e me impeça de elogiar ou admirar em público quem, além de contar com a minha estima, pode contar com a minha simpatia intelectual ou a minha admiração. Nem sequer assim acontece comigo, por reflexo do que acabo de afirmar ser habitual na crítica que por toda a parte vemos ser feita, com muito raras excepções. Sou muito pouco dado a reacções reflexas desta ordem, e, quando reajo, faço-o sempre calculadamente, e é talvez por isso mesmo que os meus escritos ferem tanto, e eu tenho fama de ser uma pessoa desagradável. Ora é esta precisamente a explicação. Quando uma pessoa, bem ou mal, se impôs, de alguma maneira, sem auxílio de ninguém, e tem constantemente de aguentar a raiva que isso causa - pois que, de um modo geral a sociedade só perdoa aquilo que ela mesma concedeu num jogo de empréstimos e hipotecas mútuas -, pode suceder, e é o meu caso, que tenha escrúpulos, fundos escrúpulos, em jungir os seus amigos à sua própria canga, forçá-los a partilhar o seu próprio destino. Porque estimo os meus amigos, nunca quis que se pensasse, eles pensassem, ou pensasse eu mesmo, que eu me escudava atrás deles, ou me servia deles para singrar o meu caminho, um caminho de que só eu, e não eles, sou ou devo ser o responsável.
Por outro lado, existe o prejuízo - que eu não temo - de que poeta a falar de outros poetas ou da poesia é uma coisa muitíssimo suspeita. Embora a minha qualidade de poeta, ou a categoria dessa qualidade, me seja contestada por alguns - com uma persistência odienta que não posso deixar de agradecer como uma homenagem -, a verdade é que, em que pese aos não-poetas, quando os poetas falam uns dos outros ou da poesia, sempre estão falando de alguma coisa que conhecem de dentro, de uma experiência efectiva que possuem e os outros, os não-poetas, não. E o testemunho que tragam, apesar de toda a ganga de particularismo subjectivo que acarrete, não pode deixar de ser da maior importância num mundo, e sobretudo num país, em que toda a gente fala, sem cerimónia alguma, daquilo que não entende ou não conhece. Se os poetas devem ser tomados exclusivamente pelo que está nos seus versos, uma vez que a poesia a não estar neles, nos versos, não está em parte nenhuma nem existe; e se por vezes os poetas contradizem, na aparência, com as suas pessoas e a s suas atitudes, o que de mais fundo na poesia dizem - não menos, apesar de tudo, pode ser um poeta ou alguém que se julga tal com consciência e dignidade, melhor apreciar o que de facto é essencial nos poemas, para lá das personalidades civis que todos usamos, nesta sociedade em que vivemos, na qual o bilhete de identidade - o do arquivo de identificação, concretizado no papel, ou o abstracto, passados pelos meios que frequentamos e principalmente pelos que desprezamos frequentar - tem tamanha importância.
Por tudo isto, que não quis deixar de lealmente expor, hesitei em vir aqui, e acabei por aceitar. Mas há ainda uma outra razão, e é essa que vai ocupar-nos.
Os quatro livros de poesia, dos quais fui convidado a falar, são subscritos por quatro poetas que eu estimo e são pessoas de quem sou mais ou menos amigo há muitos anos. Mas esses quatro poetas partilham comigo, de certo modo, de um comum destino: o de não serem unanimemente reconhecidos como tal, ou o mérito de não ser devidamente apreciado, ou de ser apreciado equivocamente, em função do que não é o mais importante e o maior da poesia que escrevem. Essa identidade contribuiu poderosamente para eu aceitar falar deles, por um imperativo de justiça que sempre me norteia, e que, após tudo o que vos expus, me libertou de facto para falar.
Pode parecer-vos estranho isto que começo por dizer deles. A maior parte das pessoas vive um pouco flutuantemente em compartimentos estanques, e esquece que a sociedade não é toda aquela rede de conhecidos e amigos que mutuamente fingem considerar-se muito. Há mais gente. E, com efeito, nem Merícia de Lemos, nem Ruy Cinatti, nem Sophia de Mello Breyner Andresen, nem Alexandre O'Neill são unanimemente considerados como os poetas que são. [...]

(início da palestra realizada na Livraria Guimarães, na tarde de 4 de Julho de 1958, para lançamento de livros dos poetas referidos - publicada pela primeira vez no 1º número de Colóquio em Janeiro de 1959 e recolhido em Estudos de Literatura Portuguesa - II, edições 70, 1988)

1.2.06

[com a força da Alegria]

NATÉRCIA FREIRE

PRIMAVERA DE JANEIRO


A Primavera anda longe,
mas eu a sinto nos dedos
da noite que se aproxima:
murmúrio de olivais
e a relva verde-fresca;
sol retardado, a pôr-se, embrulhado em mistério;
rumor de agua a correr, na Terra gigantesca.

E eu tão pequena, tão solitária, tão imensa,
no silêncio acordado desta casa da estrada!
Eu a perder-me nas adivinhações do Mundo;
a esconder-me entre os troncos tristes das oliveiras;
a debruçar-me no espelho das correntes
que irão banhar, talvez, os continentes
do meu exílio, em pátrias prisioneiras...

Ninguém me fale de beleza na Primavera!
É no Inverno que ela sempre me chega,
a erguer nos meus olhos a visão de bosques azuis...

Eu podia ser cega,
eu podia não ter tido nunca mocidade,
eu podia ignorar o cântico dos pássaros
nas madrugadas felizes,
que, ao avistar no espaço a Primavera,
quando todos os sonhos dormem,
e todas as mulheres são virgens,
e todos os homens são imaculados,
quando os doentes têm medo de morrer,
quando o ranger dos velhos carros,
nos caminhos da quinta, me ressuscita a infância,
a saudade da Primavera que há-de vir
e que, depois da chegada, nunca será aquela que sonhei,
cola-me na vidraça esta fronte sem estrelas,
- tão pequena, tão só, como podia eu tê-las?
Ergue-me o peito vasto,
desnuda-me sem luta...

Eu não escuto o silêncio,
e já ninguém me escuta.
Ao fundo, a Primavera
- que atónita ela vinha! -,
acenou-me de manso
na tardinha...

Mas fugiu da mulher
com olhos de adivinha...

(de Anel de Sete Pedras, 1952)

31.1.06

CARL SANDBURG

RÁPIDO


Viajo de rápido, num dos melhores comboios do país.
Lançados através da pradaria, da névoa azul, no ar escuro,
correm quinze carruagens com mil viajantes.
Todas estas carruagens serão, um dia, montes de ferrugem;
homens e mulheres que riem
no vagão-restaurante, nas carruagens-camas, hão-de acabar em pó.
No salão dos fumadores pergunto a um homem qual o seu destino.
«Omaha», responde.

(tradução de Alexandre O'Neill, publicado no número 4 da série de antologias Tempo de Poesia, s/d)


A. M. PIRES CABRAL

BILHETE A CARL SANDBURG


O meu comboio não é, bem sei,
o mesmo que o teu.
O meu é inoxidável.

Os passageiros sim,
são tal e qual.

E, tal como tu,
viajo acossado por perguntas
vivas como brasas.

E, tal como a ti, também a mim
um passageiro responde
quando lhe pergunto o seu destino:
Omaha.

Não há volta a dar-lhe: todos temos
Omaha por destino.

(de Que comboio é este, Teatro de Vila Real, 2005)