28.3.19

RUY BELO


Nunca ao indefeso leitor de poesia terá sido fácil discernir o que, na produção contemporânea, é ou não poético e o continuará a ser — ou a não ser —, alguns anos volvidos. Teria para isso de conseguir determinar pouco menos que toda a linha futura da história da poesia. Mas que essas dificuldades são hoje em Portugal quase insuperáveis, ninguém de olhos limpos o poderá negar.
Muitas causas para isso contribuem, desde o mais ou menos larvado desrespeito pela liberdade e isenção da crítica até à conversão da mediocridade em ideal de arte. Dir-se-á que esta questão é secundária, que sempre o poeta surgiu além ou apesar de cenáculos, compadrios e venalidades de configuração mais ou menos típica, com maior ou menor consciência praticados.
Mas, no limiar do exercício da crítica, levanta-se a indeclinável obrigação de procurar ao menos apontar para o mal. Sendo a formação do gosto poético tradicionalmente deixada à livre e desconexa iniciativa de quem lê por ler ou para, lendo, escrever, impõe-se-nos o trabalho preliminar de ao menos levantar a voz para, quanto mais não seja, não colaborarmos nessa obra de perversão do gosto. E a crítica, embora de feição construtiva ou talvez por isso mesmo, não poderá deixar de se impor esse ingrato trabalho, até por uma elementar questão de honestidade.
Ultimamente tem-se abusado dessas técnicas de desnorteamento que, por fraqueza ou ambição desproporcionada, sempre aliás se usaram. A poesia, que outrora se apresentava discretamente, de mãos caídas, aparece agora divulgada, se não até construída, através de métodos mais ou menos jornalísticos, não sabendo ou não querendo os poetas renunciar a um maior alcance no espaço, em favor de uma mais autêntica sobrevivência no tempo. Daí a dificuldade — momentânea apenas, valha-nos isso — em distinguir entre poetas que o são e pessoas — respeitáveis pessoas, vamos lá — que por tal se pretendem fazer passar.
Se outro remédio não houver, resta aos autênticos poetas, àqueles que só a uma norma íntima afinal obedecem, resta — dizíamos nós — aos poetas cultivar a impopularidade, certos de que a poesia é, como toda a arte, essencialmente impopular. Se houverem de prescindir de público, aliás tão necessário na progressiva definição dessa norma íntima, que lhes não faleça a coragem de saber prescindir. Esse público acabará por se formar, não talvez a tempo de influir beneficamente na criação da obra, mas de qualquer forma em condições de delimitar-lhe o espaço de circulação.
Só é pena que, podendo porventura preencher lugares altamente remunerados ou pelo menos granjear uma merecida consideração social, os aventureiros da poesia não saibam eximir-se a perturbar o trabalho daqueles que à poesia sacrificaram pelo menos elevada remuneração e alguma consideração social.


(excerto de «Atentados contra a criação artística», in Na senda da Poesia, 1969)