6.6.09

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FAUSTO

EUROPA QUERIDA EUROPA


Europa nascida na Ásia profunda
ó filha do rei fenício Agenor
que Zeus entranhado no corpo de um touro
levou-te p'ra Creta cativo de amor
Europa é de Homero
de helénicas formas
do forum romano e da cruz
de tantas nações
ariana e semita
ventre das descobertas
da luz
do diverso sistema do modo diferente
da era da guerra e agora da paz
és assim querida Europa

vem que eu te quero toda do mar à montanha
vem que eu quero muito mais bela que o mar
vem vencendo cizânias que os povos sem feudos
sempre se amaram brilhantes em todo o lugar
o teu chão não é traste
de meros mercados
de pauta aduaneira
ou cifrão
é um terrunho de almas
uma ideia
um desejo
de uma nova maneira
em fusão
desfazendo complexos d mapas cor-de-rosa
sem a má consciência no verso e na prosa
só por ti querida Europa

para que sejas tu mesma a decidir o teu uso
para que sejas tu mesma ainda mais natural
não me toques o "beat" à americana
que esse já nós conhecemos na versão original
aguenta-te firme
livre de imitações
espera só mais um pouco
já vai
o que resta e o que sobra
aquela mesma saudade
toda a imaginação
ainda mais
não sentes um vago um suave cheiro a sardinhas
a algazarra nas ruas e o troar dos tambores
somos nós querida Europa

(do álbum Para além das Cordilheiras, de 1987)

4.6.09

[Prémio Camões – ler aqui e ouvir aqui]


ARMÉNIO VIEIRA


LISBOA - 1971

A Ovídio Martins e Osvaldo Osório


Em verdade Lisboa não estava ali para nos saudar.

Eis-nos enfim transidos e quase perdidos
no meio de guardas e aviões da Portela.

Em verdade éramos o gado mais pobre
d'África trazido àquele lugar
e como folhas varridas pela vassoura do vento
nossos paramentos de presunção e de casta.

E quando mais tarde surpreendemos o espanto
da mulher que vendia maçãs
e queria saber d'onde… ao que vínhamos
descobrimos o logro a circular no coração do Império.

Porém o desencanto, que desce ao peito
e trepa a montanha,
necessita da levedura que o tempo fornece.

E num camião, por entre caixotes e resquícios da véspera,
fomos seguindo nosso destino
naquela manhã friorenta e molhada por chuviscos d'inverno.

(de Poesia Um – 1971-1974, in Poemas, Ilhéu editora, 1998)



SER TIGRE


O tigre ignora a liberdade do salto,
É como se uma mola
O compelisse a saltar

O tigre não ama.
Ele busca a fêmea
Como quem procura comida.

Sem tempo na alma,
É no presente
Que o tigre existe.

Entre o cio e a cópula.
Nenhuma voz lhe fala de Deus,
O tigre não morre, dorme e passa.

(de Poesia Três – Após 1981, in Poemas, Ilhéu editora, 1998)



Graças dou por Luís Vaz,
Ele-Mesmo, varão audaz,
como Ulisses, natatório,
ululado por ciclópicos
bêbedos canibais.

Mas quem pode afogar
tal homem, decepar suas mãos,
liquefazer seu poema?

Se é verdade que o Novo Reino
sucumbiu à foice com que Deus
decepa a espiga ruim, também é certo
que a partir de um bla-bla ruidoso
com que Viriato, mais que a funda,
espantava os filhos de Eneias,
Luís Vaz, pegando nele, criou o poema
e a pátria que deveras conta.



ANTIPOEMA

Já sei a eternidade: é puro orgasmo.
Como assim, meu caro Drummond,
se o que se segue ao sémen
são as sobras de uma laranja
cortada em dois, sendo que
uma das metades é apenas casca
lembrando a pele que as múmias
costumam ter, enquanto a parte
que teima em ficar redonda
é só a metade de uma geometria
que já foi doçura e polpa,
agora acre e assassina mais que a faca,
ao lado da qual jaz, definitivamente torpe,
já que as próprias moscas, apavoradas, fogem.



EXCENTRICIDADES GREGAS

Zenão rejeitava o óbvio
- entre o arqueiro e o alvo
o percurso da flecha é infindável,
de forma que o célere Aquiles
nunca apanha a tartaruga.

Platão era o oposto, afirmava
o improvável - a Ilíada, por
exemplo, era um mero duplicado
de um original escrito por um poeta
anterior ao nascimento
das estrelas, cujos símbolos
são a Esfera, a Luz e a Palavra.

Pitágoras era de opinião
que os números pares são demoníacos,
razão por que o três é melhor
que o seis, o cinco preferível
ao quatro e assim sucessivamente.
Nunca se deve comer feijões.
Quem o fizer corta o fio das
reincarnações, de sorte que a alma
fica prisioneira num eterno triângulo,
ou seja, entre dois catetos
e uma hipotenusa guardados por um dragão
de mil olhos e três línguas de fogo.



MALAE TENEBRAE

Never more! crocitava
o corvo Poe
aspergindo gordura
fervente e fétida
sobre os defuntos
que o chifrudo rei
dos pés-juntos
se aprestava
para transportar
ao reino onde as maçãs
nascem já podres
e os escorpiões
jamais param de crescer
para o tormento
das almas.

(de MITOgrafias, Ilhéu editora, 2006)

3.6.09

[ver outras evocações aqui, aqui e aqui]

GLÓRIA DE SANT’ANNA


até que volte a ver-vos me reconhecereis
não pela face desnecessária mas
porque aí estareis apenas

e quando vos movimentardes (se)
a agitação perturbada que sereis
vos dará a imponderável consistência
de entre mim e vós

não haverá gestos e até nem vozes (acredito)
só a lancinante serenidade resultante
e o desconhecido imerso (ou emerso) azul alívio




mas por outro lado poderia romper-se também
num relâmpago visível pelo que se chama céu
a nossa alegria

e voariam pássaros inacreditáveis pelo que se chama céu
e poldros de crinas longas até ao vento
bateriam os cascos nunca ferrados em galope sobre
o que semelhasse campina

e alguém poderia afirmar que nos viu
pela força incontrolável da nossa alegria




(a força incontrolável da nossa alegria
que deslassa os fios de qualquer pensamento
e despedaça as palavras em risadas e lágrimas
e se alimenta do horizonte dos dias

e é como uma sentinela no umbral da porta à noite
molhada de luar e arrepiada pelo gume das folhagens
escolhendo em silêncio uma estrela longínqua
e simultaneamente é áspera e doce)

mas quem o afirmasse seria apontado
como espontaneamente louco voluntariamente interpondo-se

a vós

tão desesperadamente ocultos
nas linhas do meu rosto


(de Gritoacanto (1970-1974), in Amaranto / Poesia 1951-1983, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1988 – Biblioteca de Autores Portugueses; o 2º e o 3º poemas haviam sido antes publicados em Junho de 1972, no número 3/4 de Caliban, em Lourenço Marques)

2.6.09

VITTORE CARPACCIO


O Sonho de Santa Úrsula, 1495
óleo sobre tela
274x267 cm
Veneza, Galleria dell'Accademi
a


LUÍS QUINTAIS

O sonho de Santa Úrsula
(Carpaccio)


Disse-te que não seria capaz de escrever
um poema de amor.

Como representar a luz quando essa luz
é o véu que recobre o sonho de outrém?

Assim é aquilo que a palavra amor diz,
aponta, descreve em seu secreto centro.

Íntimo lugar onde um anjo se abeira
da tua morte, da minha morte, e nos enlaça

sob a luz recíproca, como se pudéssemos
sonhar, ambos, o mesmo sonho, a mesma dor,

o mesmo movimento, lento e obscuro,
de um deus frágil e atento.

Seríamos o imaginado centro
desta sala, deste limiar, deste medo

que o anjo diz sem dizer, que o anjo
persegue sem sinal de perseguição sequer.

Algo se diz, inapelável, atrás
do umbral que não vemos.

(de Duelo, edições Cotovia, 2004)

1.6.09

ARMINDO TREVISAN

HOMO VIATOR


Sou homem… Que bom é ser
qualquer coisa, assim, ao léu,
uma pluma de vender,
um pensamento, um chapéu,
enfim ser tão somente isto,
ser apenas pelo meio,
sem um nome, sem um misto
de ancoragem ou de enleio,
ser nada (não é possível)
ser tudo (mas é demais)
ser então o indefinível
nem tão pouco, nem demais.

Ser no amor o amor calado
meio nu, meio essencial,
porque tudo o que é colmado
bem parece horizontal.
Só o que não se aprimora
até ao pormenor existe:
o dia é adulto na aurora,
a noite mais bela, triste.

Por isso, desejo ser
sendo apenas o que sou:
um pouco de parecer
e muito que não chegou.

(in dois poetas novos do Brasil, Moraes editores, 1972 – Círculo de Poesia)