12.6.10

FERNANDO ESTEVES PINTO


A ausência é um desejo do silêncio.
Um encontro incomunicável do corpo com as coisas.
Como escutar os sons do leite na profundidade dos seios.

Libertas o pensamento lentamente à espera do dia.
Vem das sombras crescendo o lugar da dúvida.
Dos olhos começa a distância do caminho.

Aqui nasce o tremor das pálpebras,
os anéis da claridade lenta.
A legibilidade fria do vazio.

Através do contacto físico do corpo
subsiste a impenetrável construção do poema.


(de Área Afectada, Temas Originais, 2010)

11.6.10

DANIEL FARIA


Falo daquilo que vejo, embora possas pensar que sou cego
seguindo as mãos - sim, toco as palavras nas suas superfícies
e utensílios.

A primeira palavra que os olhos viram, agora que a recordo,
parecia uma imagem - sim, um som desenhado como um fóssil
(falo de fóssil, mesmo
que ele demore muito a aparecer no que digo),
um som do tamanho de um azulejo: agora que me lembro que era uma palavra
que brilhava nos meus olhos ao vê-la
(ver uma palavra era uma planta muito diferente,
um oxigénio muito difícil de se respirar).

Sim, agora vejo que falo, embora possas pensar que sigo pelo tacto a escrita.
Sim, eu leio e decifro. E agora sei que oiço as coisas devagar.


(de Homens que são como Lugares mal Situados, Fundação Manuel Leão, 1998)

10.6.10


A partir de agora, a convite da Inês Ramos, passo a colaborar com o blogue Porosidade Etérea.
Espero estar à altura da responsabilidade.
MIGUEL TORGA


Coimbra, 10 de Junho de 1988 - Não há nada a fazer. A retórica é o oxigénio do patriotismo. Sem ela, as nações não teriam rosto visível para as multidões.


(de Diário XV, edição do Autor, 1990)

8.6.10

ANTÓNIO MANUEL COUTO VIANA


INTERIOR


POR trás dos muros da nossa casa
Estamos tão juntos que nos tocamos:
O vento é brisa e a brisa é asa.
Por trás dos muros da nossa casa
Todos os frutos ficam nos ramos.

Vivamos, pois, dentro de nós,
Deixando aos outros o gesto e a voz.

3-Novembro-49



RECOMPENSA

VENHA um momento de Poesia:
Que eu sinta essa alegria casta e saborosa
De quem lidou todo o dia
E pediu, como paga, uma pequena rosa!

Venha, de novo, o coração e a espada
(Que saudades de mim quando adormeço
E a vida se me dá completa, mas errada
Como um avesso)!

Venha o beijo sem lábios que redime
As chagas vis do meu peito
— O único perdão para o meu crime
De ser real e estreito!

— Mas só tu, que expulsei dos meus poemas
Por não te querer saber demais de cor,
Me vens cobrir de injúrias e de algemas:
O teu beijo e a tua flor!

2-Abril- 49


CÂNTICO

TEMOS o odor e a cor que tem
A flor pendente dos ramos,
Pois somos virgens para além
Dos beijos que trocamos.

Só a nós nos é dado o Santo Graal
E vamos puros quando o amor nos chama;
Iguais perante o Bem, perante o Mal,
Temos asas de luz em mares de lama.

Tanto basta pra sermos celebrados:
Os nossos corpos, quando unidos, dão
O branco ao sol, o azul ao céu, o verde aos prados
E o ritmo de vida ao coração.

26-Agosto-49


NASCENTE

SOUBESSEM o quanto me custa sabê-los
Medrosos, inquietos, na noite indiferente:
As mãos tacteando os soltos cabelos,
Os olhos possessos de um brilho doente:

Sózinhos, vazios de crenças submissas,
Sem rastros de estrelas ou pombas no ar...
— Areias de Alcácer, fatais, movediças,
Lhes 'stão exigindo morrer devagar.

Soubessem o quanto me custa a recusa
Da flor dum sorriso, da cor dum afago;
Que angústia indomável se expande e soluça
Nos versos que escrevo, nos sonhos que trago.

Sofrei, penitentes sem luas redondas.
Com chagas na alma, sem pensos de linho!
— Meu Deus, se os escutas, por Deus! não respondas
A's preces piedosas de calma e de ninho.

Deixá-los, gritando o mal sem remédio
De pálidas febres, de rosas esguias;
Deixá-los, submersos no ignoto mistério
Do crime das horas, na ronda dos dias.

Quem nasce humilhado com loiros e glória;
Quem vê do seu berço os frutos maduros,
Não sabe a que sabe o sabor da vitória,
Pois não há vitória nos passos seguros.

Mas custa, eu sei quanto! sabê-los sem rumo,
Na noite indiferente, julgados perdidos.
Cativos: a vida é mais do que um fumo ?
……………………………………………………………………
— Roubei à Poesia meus cinco sentidos.

2-Janeiro-50


Desenhos e poemas da primeira página de:
[clicar para ver melhor]

(reproduções a partir da edição fac-similada: Contexto editora, 1989)

outras evocações (pela ordem por que as vou vendo):
Resumo biográfico, em Porosidade Etérea
Alguns poemas e uma ilustração do Afonso Cruz, em Pisca de Gente
Continuação da publicação de Café de Subúrbio, em Café Central
Nota de Manuel Poppe (...«A Literatura não é um campeonato e as opiniões de cada um são subjectivas e sujeitas a contestação.»...), em Sobre o Risco
Testemunho de Mário Cláudio, no Público
Uma fotografia, em O Melhor Amigo
Notícia e memória de Homenagem, no blogue da Associação Portuguesa de Poetas, de que era Sócio Honorário
Um significativo poema, em antologia do esquecimento
Memória da última visita do Victor Oliveira Mateus, em A Dispersa Palavra
Um resumo crítico de Eduardo Pitta (...«A genealogia entronca em Garrett, Nobre, Pascoaes, Afonso Lopes Vieira, António Sardinha e Malheiro Dias.»...), em Da Literatura
Nota e transcrição de um poema sobre Camões, por José Mário Silva, em Bibliotecário de Babel

7.6.10

DAVID TELES PEREIRA


Everything about you,
my life, is both
nutke-believe and real


Charles Simic

Há dias em que não penso uma só palavra
que queira dizer-te, dias em que as fronteiras entre os homens
se encontram permanentemente abertas ao estreitar de mãos,
como laços de gravata a fecharem-se sobre o colarinho da camisa.
Não penso sequer na tua nuvem a morrer todos os dias à minha porta,
mas diz-me, diz-me afinal de contas tudo o que quiseres.
É que eu, eu passei demasiado tempo na tua pele,
a sonhar os gregos com intenções de cerâmica e laser,
e agora é Outono a caminho do teu rosto,
resta-me passar a rua pelos olhos, pedir café e uma amostra de cinema datado,
tal como a originalidade da nossa história,
entregue a amanuenses talentosos na hora de nos ortografar bem.

Não pareço feliz, mas pareço belo.
Terá de ser suficiente para agarrar pelos cabelos a onda
e fugir para tão longe da praia,
sempre a fingir esta versão super-heróica de mim próprio
de lábios, olhos e estômago pintados
ao jeito de uma obsessão ostensivamente recente:
tendências nunca reconhecidas nos séculos precedentes.

Admitir maternidade nestas putas de livros, à falta de linhagem feminil
que justifique a brandura da nossa crónica,
nunca como um truque, mas como uma tragédia,
enquanto dormes, a fazer de conta que eu estou aqui,
noite após noite, a tentar perceber porque é que a leitura conjugada
deste e daquele sentido é quase uma colagem
ao lastro de justiça daqueles que nos correm na família.
Escrever na terra prova uma série de coisas,
mas provas bem melhores surgem ao apagá-la,
porque a terra não se encontra com a terra, nem com o sangue.
Não somos pessoas agradáveis de conhecer.


(de Biografia, Língua Morta, 2010)

6.6.10

FERNANDO ECHEVARRÍA


A LUZ NOS GUIE DO TEU ROSTO. APENAS
ela nos seja, mesmo à noite, dia.
E a abundância de dias enriqueça
esta velhice desprendida,
de forma a os frutos lúcidos da terra
dispensarem maior sabedoria.
E reunirem. Serem porta aberta
que a chegada dos outros endominga.
Como o domingo se endominga à mesa
com os frutos polícromos do dia.
E sobre todos esses frutos se erga
o teu rosto de luz, mesmo que o enigma
da sua claridade ainda só seja
a que há-de vir. E já desponta. E vinga
como o esplendor, depois da noite hesterna,
que recupera terra mais antiga.


(de Lugar de Estudo, edições Afrontamento, 2009)