3.1.04

EDUARDO GUERRA CARNEIRO

Nasceu em Chaves, em 1942.
Foi também jornalista.
Foi hoje noticiada a sua morte.

É hoje vulgar dizer-se: "Isto anda tudo ligado, como diz o poeta." E qual é o poeta que diz: Isto anda tudo ligado? Camões? Pessoa? Não. Isto anda tudo ligado é o título dum livro que Eduardo Guerra Carneiro publicou em 1970.
O que para o poeta andava ligado naquele já remoto ano de 1970? Tudo: a cerveja, os Beatles, uma mesa de café numa pequena vila perto de Tomar, um poema da Camilo Pessanha, a Twiggy (inventora de minissaia), a memória "destes anos, destas cidades mornas onde com vagar enlouqueço", enlouquecemos, enlouqueceremos. E também Allen Ginsberg, Joan Baez a cantar, a estação de Nelas, uma enorme bebedeira na Covilhã, Walt Whitman, os guerrilheiros que saem do Vavá "com uma citação à bandoleira". E outra vez a cerveja: as letras "que escorrem pela caneta como a cerveja pelos cantos da boca"...
Poesia em prosa, prosa de poeta incorrigível, melancólico, irónico, um tudo-nada romântico. Poesia às vezes jornalística, quotidiana e quotinocturna, em cima do acontecimento. Antes, durante e depois da ressaca. Confissões, recordações da terra natal, paisagens, retratos. (Manuel João Gomes - texto da contra-capa de Profissão de Fé)

ÁRVORE

Árvores crescem em lugares
inesperados. Árvores estranhas
com seus frutos humanos. Árvores
de guerra caídas sobre a estrada.
Árvores de paz rompendo os ramos.
Ar de Abril desfeito numa tempestade.
Árvore como se fosse uma armadura
onde ainda escrevo sem querer,
sem crer, teu nome - ligeiro arbusto

(da sequência Jardim de alguns objectos e coisas reais)

Há um arcanjo de que Rilke falava. Uma pedra tumular no mosteiro de Leça do Balio. Um relógio despedaçado encontrado junto ao Drugstore dos Campos Elísios. Uma rapariga que subitamente parou e alguém lhe deu a mão. Nunca se tinham visto ou encontrado e qualquer coisa ali se passou que ele não sabe explicar pois havia demasiado movimento, alguém que esperava lá ao fundo, ele soltou a mão que segurava, ela afastou-se, e cada um, ainda a olhar para trás, partiu para seu lado para nunca mais se ver ou encontrar.

(da sequência Isto anda tudo ligado)
(de Isto Anda Tudo Ligado, Cadernos Peninsulares, 1970)

AZULEJOS

A luz entre as mãos é azulejo
no redondo do gesto - ombro ou testa.
O olhar já se perde noutro texto:
unhas de Pessanha, cotovelo alevantado,
o sorriso onde África desenha o gosto
- dança e desejo do ar livre. A cal
não é de morte. O sol ainda brilha
em teu gostar. Juntas as mãos; arde
vento noutros campos. Da claridade
agora vejo esses contornos. Perturbado
avanço, na curva entre os peitos. Ancas
juntas com medo de eu abrir
mercado e fábrica. A luz de novo acesa?
O azulejo é esplendor; entrar na casa.

Sim: azulejos são desejos de eu voltar.
Cantigas? Nem amigas me fazem desistir
do meu enterro. Assim destino a vida
em desatino. Envolvo o corpo na batina
sem sossego e já torno ao copo, à capa
do regresso. Revoltas no azulejo
em azul e amarelo na parede.
Retrato anónimo onde artista
argamassa o desejo, já assina.
Desistir? Não desisto antes do fim!
Insisto em mim. Cantigas? Assim
contorno o azulejo. Peço afinal
mais um copo - regresso
ao corpo-a-corpo do desejo.

GATO

Chama-se Luís o gato do terceiro
e é companheiro de um mestre filósofo.
Em madrugadas altas há por vezes sobressalto.
quando o bichano acorda mal disposto.
O professor, sábio também
em jogos de paciência, acalma
o animal e já o mima. Trata-se,
vendo bem, de outra ciência,
tão difícil de conseguir como
um estudo de Pessoa. Chama-se Agostinho
da Silva, o do terceiro, e tem um gato
com quem, à vontade, discreteia.
Luís, discípulo, ronrona baixinho.
Tudo vai bem, assim, no sete desta rua.

(de Contra a Corrente, &etc, 1988)

As cores

Amarelo sobre lilás, faixas de
laranja e muito verde. Do outro lado
o castanho terroso, o azul pálido,
alguma prata na neblina.
Rompe-se depois o vermelhão,
entre o ultramarino, e um vago
sépia surge nos contornos brancos.
O voo cinzento das aves risca
esta paisagem e apenas em fundo,
tremura junto à praia, a rebentação.
Quase sem tempo, nem espaço
para os versos, distingo ainda
um ovo de luz a afundar-se
enquanto a Outra assume a dignidade.

(de Profissão de Fé, Quetzal editores, 1990 - Grafitti)

[outras evocações deste poeta no Aviz e no Almocreve das Petas]

2.1.04

FAUSTO

Uma cantiga de desemprego


Fumo um cigarro deitado
no mês de Janeiro
fecho a cortina da vida
espreguiço em Fevereiro
e procuro trabalho
nesta esperança de Março

já me farta de tanto Abril
e aquilo que não faço
espreito por um funil
a promessa de Maio
porque esperar prometido
nessa eu já não caio

queimo os dias de Junho
no sol quente de Julho
esfrego as mãos de contente
num sorriso de entulho
para teu grande desgosto
janto contigo em silêncio
e lentamente esquecido
digo-te adeus em Agosto
meu Setembro perdido
numa esquina que eu roço
e penso em Outubro
o menos que posso

mas quando sinto a verdade
daquilo que cansa
nunca houve vontade
do tempo de andança
sinto força em Novembro
juro luta em Dezembro

(do álbum Madrugada dos Trapeiros, de 1977)

1.1.04

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

A PAZ SEM VENCEDOR E SEM VENCIDOS


Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Que o tempo que nos deste seja um novo
Recomeço de esperança e de justiça.
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Erguei o nosso ser à transparência
Para podermos ler melhor a vida
Para entendermos vosso mandamento
Para que venha a nós o vosso reino
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Fazei Senhor que a paz seja de todos
Dai-nos a paz que nasce da verdade
Dai-nos a paz que nasce da justiça
Dai-nos a paz chamada liberdade
Dai-nos Senhor paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

(de Dual, 1972)
CASIMIRO DE BRITO

A PAZ


Se eu te pedisse a paz, o que me darias
pequeno insecto da memória de quem sou
ninho e alimento? Se eu te pedisse a paz,
a pedra do silêncio cobrindo-me de pó,
a voz limpa dos frutos, o que me darias
respiração pausada de outro corpo
sob o meu corpo?

Perdoa-me ser tão só, e falar-te ainda
do meu exílio. Perdoa-me se não te peço
a paz. Apenas pergunto: O que me darias
em troca se ta pedisse? O sol? A sabedoria?
Um cavalo de olhos verdes? Um campo de batalha
para nele gravar o teu nome junto ao meu?
Ou apenas uma faca de fogo, intranquila,
ao centro do coração?

Nada te peço, nada. Visito, simplesmente,
o teu corpo de cima. Falo de mim,
entrego-te o meu destino. E a morte vivo
só de perguntar-te: o que me darias
se te pedisse a paz
e soubesses de como a quero construída
com as matérias vivas da liberdade?

(de Jardins de Guerra, 1966)
Papa PAULO VI

Dirigimo-nos a todos os homens de boa vontade, para os exortar a celebrar o «Dia da Paz», em todo o mundo, no primeiro dia do ano civil, 1 de Janeiro de 1968. Desejaríamos que depois, cada ano, esta celebração se viesse a repetir, como augúrio e promessa, no início do calendário que mede e traça o caminho da vida humana no tempo que seja a Paz, com o seu justo e benéfico equilíbrio, a dominar o processar-se da história no futuro.
Nós pensamos que esta proposta interpreta as aspirações dos povos, dos seus governantes e das entidades internacionais que intentam conservar a Paz no mundo; das instituições religiosas, tão interessadas no promover a Paz; dos movimentos culturais, políticos e sociais que fazem da Paz o seu ideal; da juventude, em quem mais vivas estão as perspectivas de caminhos novos de civilização, necessariamente orientados para um seu pacifico desenvolvimento; dos homens prudentes que vêem quanto a Paz é necessária e, ao mesmo tempo, quanto ela se acha ameaçada.
A proposta de dedicar à Paz o primeiro dia do novo ano não tem a pretensão de ser qualificada como exclusivamente nossa, religiosa ou católica. Antes, seria para desejar que ela encontrasse a adesão de todos os verdadeiros amigos da Paz, como se se tratasse de uma iniciativa sua própria; que ela se exprimisse livremente, por todos aqueles modos que mais estivessem a carácter e mais de acordo com a índole particular de quantos avaliam bem, como é bela e importante ao mesmo tempo, a consonância de todas as vozes do mundo, consonância na harmonia, feita da variedade da humanidade moderna, no exaltar este bem primário que é a Paz.
A Igreja católica, com intenção de servir e de dar exemplo, pretende simplesmente «lançar a ideia», com a esperança de que ela venha não só a receber o mais amplo consenso no mundo civil, mas que também encontre por toda a parte muitos promotores, a um tempo avisados e audazes, para poderem imprimir ao «Dia da Paz», a celebrar-se nas calendas de cada novo ano, carácter sincero e forte, de uma humanidade consciente e liberta dos seus tristes e fatais conflitos bélicos, que quer dar à história do mundo um devir mais feliz, ordenado e civil.

(Início da Mensagem para a celebração de um «dia da paz»)

31.12.03

Cavalo, cavalinho, cavalicoque: lá se acabou o Poemário 2003 da Assírio...
XANA

Final do Ano (Zero a Zero)


Muito ao longe sinto as horas
E os minutos a correr
Vejo as mágoas já passadas
E os moinhos por mover
Entre os sonhos vitimados
E os que ainda vão matar
Vejo o final do ano a chegar

Pelos lábios ressequidos
Das palavras que inventamos
Pela força que desmaia
Pelos perigos que passamos
Entre a espera comedida
E a pressa de já lá estar
Vejo o final do ano a chegar

Zero a zero

Por entre o riso contagiante
E o silêncio mais profundo
Entre o choro comovente
De alguém lá no bar do fundo
Entre o gelo derretido
E as vitórias por brindar
Vejo o final do ano a chegar.

(do CD Espanta Espíritos, de 1995 - com música de Jorge Palma)

29.12.03

OCTAVIO PAZ

SILÊNCIO


Assim como do fundo da música
brota uma nota
que enquanto vibra cresce e se adelgaça
até que noutra música emudece,
brota do fundo do silêncio
outro silêncio, aguda torre, espada,
e sobe e cresce e nos suspende
e enquanto sobe caem
recordações, esperanças,
as pequenas mentiras e as grandes,
e queremos gritar e na garganta
o grito se desvanece:
desembocamos no silêncio
onde os silêncios se emudecem.

(de Libertad bajo palabra, 1960 / traduzido por Luís Pignatelli e incluído em Antologia Poética, publicações Dom Quixote, 1984 - Poesia Século XX)

28.12.03

[gosto muito de inventários XXXIII]

RUI KNOPFLI

INVENTÁRIO


Rosas inglesas rosa pálido tingido
de alvura, gravatas Lanvin e Ricci.
Na mão a demorada taça de ordálio,
ouro velho e insidioso, doce cheiro a fumo.
Objectos familiares, ténues, difusas

lembranças de longe. Um crânio
de ébano negrejando entre a luz
e a garrulice do barro artesanal,
o cio magoado da voz fadista. A ilha ao sol,
ao sonho, amortalhada na distância.

O cajueiro e a mafurra, micaias
agrestes, panoramas da infância,
dolorosos, esbatidos fantasmas
de outro tempo, agigantados em olmos
e castanheiros na oval cinzenta

do No Man's Common. Livros por abrir
dormitando na poeira, o gráfico
anguloso do horóscopo, retratos,
memória paralisando o instante
esquecido. A mulher de passagem,

velo fulvo, debrum para o azul
lavado do olhar, perfil mitigando
a vacilante modorra do entardecer.
Alongada curva do flanco retraindo-se
sob a experimentada carícia antiga

dos dedos cansados. Toda a memória
inflectindo o gesto, o gesto já só memória
que de si mesma se desprende e afasta,
conjecturando, indolor, a paisagem
neutra dos dias que se avizinham ermos.

(de O Corpo de Atena, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984)
[outros melros XIII]

FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO

O melro


Tanto quanto eu, ele ama
as folhas secas, debica-as
e devora-as. Está a procurar
debaixo da face da folha
os vermes. Percorre com apuro
recessos, as nervuras.
Trabalha com amor
para a sua memória.

(de Três Livros - publicado pela primeira vez em Obra Breve, editorial Teorema, 1991)