16.3.06

[outros melros XXXIII]

ALMEIDA FARIA

[...] não desistamos contudo, que a mesma hora é em que nos campos os melros assobiam pelas sebes, gravam cigarras o seu canto contra o poente persistente, luzes se acendem nas casas da encosta e no mar nasce a lua nova, peixes-sapos mergulham na lama mais profunda para que a metamorfose seja oculta, tudo se entrega aos braços nocturnos do terror que cresce atrás de cada porta de cada comprido corredor que meninos percorrem de candeia na mão a seguir ao jantar a caminho do quarto onde só dormem tarde escondidos no lençol cheios do desejo urgente de abraçar um corpo e cada esquina aguarda uma angustia ignorada, [...]

(excerto do III Fragmento de Rumor Branco, 1962)

15.3.06

[Quaresma na TdA]

E. E. CUMMINGS

sou uma pequena igreja(não uma grande catedral)
longe da opulência e da imundície das apressadas cidades
- não me preocupo se os dias mais breves se tornam brevíssimos,
não tenho pena quando sol e chuva fazem Abril

a minha vida é a vida do ceifeiro e do semeador;
as minhas orações são as orações da terra onde desajeitadas lutam
(encontrando e perdendo e rindo e chorando)as crianças
cuja qualquer tristeza ou alegria é meu tormento e meu aprazimento

à minha volta surge um milagre de incessante
nascer e glória e morte e ressurreição:
sobre o meu ser adormecido flutuam flamejantes símbolos
de esperança,e eu acordo para uma perfeita paciência de montanhas

sou uma pequena igreja(longe do alucinado
mundo com o seu enlevo e angústia)em paz com a natureza
- não me preocupo se as noites mais longas se tornam longuíssimas
não tenho pena quando a calma se torna canto

de inverno a primavera,ergo a minha espiral diminuta para
o misericordioso Ele Cujo único agora é para sempre:
permanecendo erecto na verdade imortal da Sua Presença
(acolhendo humildemente a Sua luz e orgulhosamente as suas trevas)

(in livrodepoemas, tradução de Cecília Rego Pinheiro, Assírio & Alvim, 1999 - original de 95 Poems, 1958)