21.6.16

GEORGES BATAILLE


É o estado de transgressão que comanda o desejo, a exigência de um mundo mais profundo, mais rico e prodigioso, numa palavra a exigência de um mundo sagrado. A transgressão traduz-se sempre com formas prodigiosas como as formas da poesia e da música, da dança, da tragédia ou da pintura. As formas da arte não têm outra origem além da festa de todos os tempos; e a festa, que é religiosa, liga-se à ostentação de todos os recursos da arte. Não podemos imaginar uma arte independente do movimento que gera a festa. O recreio é, num ponto, a transgressão da lei do trabalho. A arte, o recreio e a transgressão só têm o seu encontro ligados num movimento único de negação dos princípios que presidem à regularidade do trabalho. Foi na aparência a maior preocupação das origens — como é ainda nas sociedades arcaicas — conciliar o trabalho e o recreio, o interdito e a transgressão, o tempo profano e os desvarios da festa numa espécie de equilíbrio leve onde os contrários não param de se compor, onde o próprio recreio ganha a aparência do trabalho e onde a transgressão contribui para a afirmação do interdito. Só avançamos com uma espécie de segurança: de que a transgressão, num forte sentido, só existe a partir do momento em que a própria arte se manifesta, e o seu nascimento na Idade da Rena coincide pouco mais ou menos com um tumulto de recreio e festa que estas figuras anunciam no fundo das cavernas onde a vida resplandece, onde ele está sempre a ser ultrapassado e se consuma no jogo da morte e do nascimento.


(excerto de O Nascimento da Arte, tradução de Aníbal Fernandes, Sistema Solar, 2015)

19.6.16

[outros melros LXIX]

CATARINA SANTIAGO COSTA

És um melro azul-ígneo,
os meus tímpanos vibram com os teus gorgeios
 ouço o que cantas, não o que dizes.

Pergunto-me se preferia ser a magnólia
pesada de folhas e flores gordas
que terias por morada
ou um parasita mínimo,
alfaiata de bainhas e mielina
que se aconchegasse no teu cérebro,
assomasse à escotilha do olho
a ver-te o voo.
Sairia depois pelo teu bico em sinfonia
perguntando «queres que regresse?»
e «sim» ou «não» seriam respostas boas
desde que me mantivesses por perto.

Mas é hora de chegar a termos com a dieta aérea
e acolher o vazio infinito de Deus
até ele forjar mar e terra.


(de Tártaro, douda correria, 2016)