19.6.10

Hoje o dia correu genericamente bem, apesar de termos sofrido uma emboscada dos homens de Arroyo que nos dizimou gravemente.
(de um conto de Woody Allen)


Mais logo, na Rua de S. Filipe Nery, junto ao Largo do Rato, vai decorrer a festa de despedida de um dos espaços mais bonitos e acolhedores da cidade de Lisboa nos últimos 914 dias.
Trata-se da livraria da Catarina Trama e do Ricardo Trama, dois irmãos cheios de inteligência, afecto e simpatia que transformaram o seu apelido no nome de uma preciosa livraria, onde se podiam encontrar os títulos mais óbvios e os mais rebuscados, mas onde também se podia ouvir música, dançar, ficar sentado (ou de pé) a olhar para o ar ou a conversar descontraidamente - além dos cafés com nome de escritores. A Trama, tal como os muitos amigos e simpatizantes a conheciam, vai fechar. Mas os irmãos Trama prometem reabrir noutro local.
Aquele 25B foi espaço de subversão e de encontro. De subversão porque de encontro. Espaço de afectos. Aos profetas das desgraças todas resta dizer que a Trama é um sucesso, a Trama ultrapassou a crise, a Trama é sustentável. Porque a Trama não é apenas um negócio.

Até já. Abraço do
senhor cliente.

[na foto: os irmãos Trama e, algures ao fundo, Jorge Fallorca]
ÓSSIP MANDELSTAM


Um friozinho faz cócegas na nuca,
é impossível ver de imediato:
também a mim me corta o tempo como
a ti se desgasta e camba o salto.

A si mesma se vence a vida, o som
derrete pouco a pouco, falta sempre
qualquer coisa, até falta o tempo
para ter qualquer coisa que se lembre.

Dantes era melhor, é bem verdade;
esse velho sussurrar de outrora
em nada se pode comparar,
ó sangue, ao teu sussurrar de agora.

Pelos vistos não é gratuito
este leve mexer dos lábios,
e abanam, mexem-se os ramos
que condenaram a ser cortados.

1922


(de Fogo Errante - antologia poética, tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra, Relógio d'Água editores, 2001)

18.6.10



[tenho quase a certeza de que foi o primeiro poema de Saramago que conheci e quase a certeza de que foi, cantado por Manuel Freire, através do João e do Pedro Tolentino, teria eu uns 15 ou 16 anos]

JOSÉ SARAMAGO


OUVINDO BEETHOVEN


Venham leis e homens de balanças,
mandamentos d'aquém e d'além mundo.
Venham ordens, decretos e vinganças,
desça em nós o juízo até ao fundo.

Nos cruzamentos todos da cidade
a luz vermelha brilhe inquisidora,
risquem no chão os dentes da vaidade
e mandem que os lavemos à vassoura.

A quantas mãos existam peçam dedos
para sujar nas fichas dos arquivos.
Não respeitem mistérios nem segredos
que é natural os homens serem esquivos.

Ponham livros de ponto em toda a parte,
relógios a marcar a hora exacta.
Não aceitem nem queiram outra arte
que a prosa de registo, o verso acta.

Mas quando nos julgarem bem seguros,
cercados de bastões e fortalezas,
hão-de ruir em estrondo os altos muros
e chegará o dia das surpresas.


(de Os Poemas Possíveis, 1966)

16.6.10

MARGARIDA FERRA


Corredor


Se volto cedo
talvez chegue a tempo
do silêncio.
Ou ainda o som dos passos
livres pela rua que desce,
quase cai, livres,
para continuar plana depois.

Antes,
o som metálico das chaves,
as outras e a que abre.
No trinco, e mesmo assim
o silêncio.
Ou ainda a campainha da loja em frente,
quando o vento lhe agita as franjas coloridas,
esse vento ou uni mais alto,
na árvore, cortina da sala.

A porta aberta, passagem
demasiado estreita,
metade da casa
é dos outros.
Do meu lado, no fim
do maior caminho, só o rádio partido
e a luz dos primeiros dias.


(de Curso intensivo de jardinagem, &etc, 2010)

14.6.10

CARLOS EDMUNDO DE ORY


— A terra é das carícias —


A terra é das carícias
do herói e do medroso
dos vivos os nascidos
com lágrimas ou com dinheiro
Tantos mortos levam consigo
para a morte um dente de ouro
As dores repugnantes
Os sopros de inspiração
O cretino e o kantiano
Os que deixam sobre a mesa
o génio e suas medalhas
e num recanto do quarto
a amante despenteada
Acordamos com dois olhos
sem nunca ver a mandrágora
nem o trono dos relâmpagos
Pisamo-nos os calcanhares
para ir à missa à fábrica
Sentimos a solidão
no cinema e na retrete
E tantos milhões de camas
para um sonho só um pão
Dormir depois de comer
Comer depois de dormir
A tristeza da alcachofra
o plátano desnudando-se
Preciosas são as pedras
e as pedras preciosas
A visão de um cimo branco
ou de uma mulher despida
E o sol e o cemitério


(mudado para português por Herberto Helder, in Doze Nós numa Corda, Assírio & Alvim, 1997)