4.10.10

GWENAËLLE STUBBE


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Não passa de uma história de dentes. Esta cidade!
De dentes fixados sobre mim com toda a rapidez. Que no último segundo
recuperam a sua trajectória.
De todo o modo - Guardai os vossos dentes não preciso deles!
Todos nós somos apanhados nesta cidade, desde que lá estamos postos
pelo mínimo passo. No entanto não vereis aí nenhuma - junção do tipo -
O vosso ar agrada-me. Com vossa licença, vou ficar com ele.
Também esta semana, tenho esta sorte de me estar nas tintas e de passear por

sem laços.
Mesmo que isso circule pelo dobro em cada pedaço de passeio.
E pelo meu único laço, acho que sou livre e conservo com graça nesta grande
cidade, o uso perdido da minha costela.


(tradução de Nuno Júdice, in Encontros de Talábriga - 4º Festival Internacional de Poesia de Aveiro, Limiar, 2003)

3.10.10

ANTERO DE QUENTAL


Tese e Antítese


I

Já não sei o que vale a nova ideia,
Quando a vejo nas ruas desgrenhada,
Torva no aspecto, à luz da barricada,
Como bacante após lúbrica ceia...

Sanguinolento o olhar se lhe incendeia;
Respira fumo e fogo embriagada:
A deusa de alma vasta e sossegada
Ei-la presa das fúrias de Medeia!

Um século irritado e truculento
Chama à epilepsia pensamento,
Verbo ao estampido de pelouro e obuz...

Mas a ideia é num mundo inalterável,
N'um cristalino céu, que vive estável...
Tu, pensamento, não és fogo, és luz!

II

Num céu intemerato e cristalino
Pode habitar talvez um Deus distante,
Vendo passar em sonho cambiante
O Ser, como espectáculo divino.

Mas o homem, na terra onde o destino
O lançou, vive e agita-se incessante:
Enche o ar da terra o seu pulmão possante...
Cá da terra blasfema ou ergue um hino...

A ideia encarna em peitos que palpitam:
O seu pulsar são chamas que crepitam,
Paixões ardentes como vivos sóis!

Combatei pois na terra árida e bruta,
Té que a revolva o remoinhar da luta,
Té que a fecunde o sangue dos heróis!


(de Sonetos, 1886 - conforme edição de 2002 da Imprensa Nacional - Casa da Moeda, da responsabilidade de Nuno Júdice)
ARMANDO SILVA CARVALHO


OS PORTUGUESES


Todo eu sou alemão no pensamento, e antes de o saber
O francês não me deixava mentir
Com palavras de sol cinzento nesta boca insular
Dum condenado à cabeça.

Temos na língua um gosto pelo patético
Que nasce da insuficiência.
Morremos duma glória plasmada na distância,
Dirão os que não morrem para poderem
Contar.

Os que mirram, definham de goela aberta
E deixam no ar a dança gestual
De pequenos fantoches, olhos pasmados numa vida
De Europa entreaberta.

Oh, tomai por mau conselho
A minha fala doendo pelas ruas de Coimbra,
Pelas salas espessas de fumo em Lisboa
Pelas areias e dunas dessa boa Vila do Conde
Adormecida.

Um jovem irrequieto, um doente louco,
Uma cabeça virgem para recados maiores dos outros
Mundos,
Uns olhos magoados pelo sol da solidão.
Dizei-me, camaradas da luz,
Que mais vos posso dar, sem ser canção ou roubo
Do meu corpo,
Incandescente, eléctrico, lucífero?


(de Anthero Areia & Água, Assírio & Alvim, 2010)