28.5.05

JOSÉ RICARDO NUNES
Nasceu em 1964, em Lisboa.
Licenciado em Direito e Mestre em Literatura e Cultura Portuguesas (Época Contemporânea), exerce ambas as áreas de formação, tendo já publicados dois livros sobre poesia: Um Corpo Escrevente. A Poesia de Luiza Neto Jorge (&etc, 2000) e 9 Poetas para o Século XXI (Angelus Novus, 2002).



reaberto o processo confessei
a verdade como ele me obrigou
a casar e a trabalhar na loja
e o sentido da minha existência se foi perdendo
à medida que se foi revelando
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lume luz um ouro
nas veias eu andava aos solavancos
como se algo a cada passo se fosse atravessando
entre mim e o meu corpo
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fiquei sentado a ver o fogo alastrar
em cima do penedo onde ia com o meu pai
comer depois da caça as imagens
quando o corpo ferve
eu queimo-as com a ponta do cigarro
junto ao coração evitando tocar-lhe
não vá a luísa acordar

(de Rua 31 de Janeiro (alguma vozes), &etc, 1998)

FEEDBACK

trinco-me no pulso e sopro
para dentro do sangue os meus poemas


FLORAÇÃO

abana-me o corpo contra
fevereiro na luz embate o coração
move-se mais de noite acordo
com ele no lugar do cérebro
e tenho a cabeça a florir


XIV

enche os ouvidos
com areia e calca
até doer

alguém um dia
escreverá
sobre ti uma frase

(de Na Linha Divisória, Campo das Letras, 2000)


NÓS, AS CRIANÇAS

Trocamos as cores,
desconhecemos onde acaba a mão direita
e recomeça a esquerda.
Inventamos novas palavras sem saber
que desde sempre havia mundo para elas.
Ou roubamos as sílabas.
Mas somos ainda menos do que crianças,
muito menos do que aquelas crianças
que levam tudo à boca.


RIQUEZA ANTIGA

Agora somos forçados a esconder
o corpo atrás de lâmpadas.

A riqueza antiga já não gera
uma linguagem pura.


FUGITIVO

Vou trazê-lo de volta ao redil
e sufocá-lo com as minhas palavras
ou lançar-lhe fogo ou embrulhá-lo
em ramas e placentas, ele anda
às cegas a tocar nas coisas, a bater
por dentro de outro sangue, e eu não
posso deixar o meu coração
andar por aí assim perdido.

(de Novas Razões, Gótica, 2002)

26.5.05

Agora que o
cavalo se acalma para partir
o mar sobe todo até aos cabelos
e o vento repete palavras com
silêncios depois dos silêncios depois
a nitidez completamente cega
como quem perde tudo o que acumula.
Resta o nada para nos saciar.

23.5.05

JOÃO CANDEIAS

Um só começo


um só começo. momento da largada
à bolina das tentações. eu quis a
vida dos impérios, agora quero-lhes
a morte. a esta ordem opõe-se uma
outra ordem, como olho longo de
história irreversível. uma flor colhida
ganha o sentido único da energia resguardada.
um corvo precipita um relâmpago negro
sobre a baba branca do verão.
estamos vivos. estamos vivos ainda
na busca do berço inicial, quando
rejeitamos à lama o corpo pobre e minucioso
a transparência das profecias novas
embriaguez tão plena de outras descobertas
mãos arrastadas sobre o granito das
longas caminhadas nocturnas.
mas cambaleamos, e se finalmente regressamos
à chave do nosso repouso, uma criança
todavia, fere de lâminas nuas, o provecto
rosto que cresceu num outono convulso
de apelos inaudíveis

(de Estamos muito longe Meu Amor de alcançar a Terra Prometida, Átrio, 1992)

22.5.05

[um poema que fica no dia em que o Benfica ganhou o Campeonato]

JORGE DE SOUSA BRAGA

NOS SEMÁFOROS DA RUA DE SANTA CATARINA


Ao menos os teus olhos
permanecem verdes
todo o ano

(de Plano para Salvar Veneza, 1981)