3.9.11




VASCO FERREIRA CAMPOS 


CUM VOX SANGUINIS* 

 A chama na tua fronte
trazia confiante uma dor pura
íntima da luz e dos teus passos.

Com o rosto graduado de bênçãos
 viste o que cresceu no sangue
 e no poema

 a medida remota de cada céu.
* Híldegard von Bingen 

(de O Coração Sabe, Hissopo, 2003)

2.9.11

GIÁNNIS RITSOS


O INSACIÁVEL


Insaciável a dar — algumas vezes, até, coisas
que não lhe pertenciam, — como aquela montanha, por exemplo,
cor de malva no crepúsculo, com árvores de esmeralda, gravada
em vapores doirados; ou a sombra da andorinha nas espigas,
ou a forquilha caída, à noite, frente à cancela do jardim,
ou cabelos da bela mulher no acto de dizer "não".
Quanto às suas coisas — quais suas coisas? — não ficava com nenhuma;
Mantinha-se do que dava. E quando, alguma vez,
já nada tinha, cerrava os olhos, esperando
inventar algo muito maior do que ele próprio, e dá-lo.
Precisamente então, sentia que ele era aquele.
22.V.69

(in Antologia, tradução de Custódio Magueijo, Fora do Texto, 1993)

1.9.11

JOÃO BARRENTO


[...]
No contacto com a poesia de Bobrowski percebemos uma coisa essencial que a poesia deste século (pelo menos a portuguesa) em grande parte esqueceu: que o mundo lá fora existe e fala, e pede para ser ouvido e lido. O velho topos romântico do livro da natureza renasce aqui, sempre cruzado com o da História e do mito — e nesse cruzamento reside a sua originalidade —, com uma função próxima da que o filósofo Hans Blumenberg lhe atribui num dos seus fascinantes livros: a de mostrar como o metaforismo da legibilidade do mundo a partir da experiência própria pode ser um eficaz mecanismo poético (e filosófico) de presentificação e revitalização de perdas e ausências. Não era bem assim nos românticos, que exploram esse tema para se instalarem num escapismo muitas vezes regressivo, ou então para chegarem à afirmação da natureza mágica da palavra do poeta-sacerdote, particularmente em Novalis. A fonte mais directa de Bobrowski para a sua forma sui generis de diálogo com o mundo vem-lhe, porém, da própria tradição do espaço lituano das suas origens, onde subsiste a crença pagã nessa capacidade de a natureza «falar»: as coisas falam, basta dar-lhes ouvidos. Mas há sem dúvida reminiscências românticas na visão dinâmica da natureza neste poeta, que permanentemente nos parece querer mostrar como a natura naturata se tornou numa simples fachada, em letra morta de uma natura naturans; ou, inversamente, como esta, precisamente enquanto livro que fala, possui uma energia própria que actua como um sistema de sinais que traçam um mapa da História e itinerários da memória que com ela se confundem. [...]


(excerto da Introdução a Como um Respirar - antologia poética, de Johannes Bobrowski, livros Cotovia, 1990)

31.8.11

[outros melros LXII]


JOHANNES BOBROWSKI


RESPOSTA


Por cima da cerca
a tua fala:
cai a carga das árvores,
a neve.

E no sabugueiro tombado
o trinado dos melros, a voz
de ervas dos grilos
talha cortes nos muros, voo de andorinhas
a pique
contra a chuva, constelações
passeiam-se pelo céu,
na geada.

Os que me enterram
sob as raízes
ouvem:
ele fala
para a areia
que lhe enche a boca — assim há-de
falar a areia, e há-de
gritar a pedra, e há-de
voar a água.


(de Como um Respirar - antologia poética, tradução de João Barrento, livros Cotovia, 1990)

29.8.11


Teatro da cidade romana de Léptis Magna (actual Al-Khums, Líbia)
(foto daqui)


SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN


Tripoli 76


I

Cruzam-se muitas e diversas gentes
Vindas de muitos e diversos mundos
Vestindo muitas e diversas roupas
Falando muitas e diversas línguas
Vêm de muitos e diversos ritos
E cultos e culturas e paragens


II

O recitador encontra a palavra modulada
Rouca de deserto e imensidão
Entoa a veemência nua da palavra
Fronteira de puro Deus e puro nada


III

E Leptis Magna em sua pedra cor de trigo
E em seu chão de laje pelo sol varrido
Guarda o matinal no mais antigo


(de O Nome das Coisas, 1977)

28.8.11

IVAN LAUCIK


ANOTAÇÃO DE FIM DE TARDE


Nada importa, dizem-te pela manhã:
E tu (vês-te obrigado) duvidas destas palavras todo o dia.

Resiste, entretém os peixes,
canta-lhes em voz alta sobre a ponte...
Os momentos de alegria quase te envergonham:
As distâncias convenientes, relação de altura e profundidade,
os invernos curtos, vento em conta para os moinhos -
e um tempo longo coberto
de ornamentos de ferro!
(Os livros de Lógica estão gastos
pelas mãos e pelo suor!)

Alguém que ouve mal embriaga-se de palavras:
O futuro pertence apenas aos helicópteros silenciosos,
capazes de aterrar na palma da mão.
(Haverá palma da mão?) E continua em sonhos
a separar-se o comestível do que não presta.

Sim, chegam-nos plantas cheias de entusiasmo.
Mas não é por isso que a folha artificial é menos verde.

Assim os incrédulos valorizam a fé.
Os infalíveis esperam ser salvos pelos nossos erros.
Os vivos sabem
que tudo importa
desde manhã.


(de Mobilis in mobile, tradução colectiva (Outubro 1997) revista e apresentada por Pedro Mexia, Quetzal editores, 1999)