15.5.04

[personagens recorrentes II]



RUI KNOPFLI

O ESCRIBA ACOCORADO


Sentado na pedra de ti próprio,
não tens rosto, senão o que,
de anónimo, a ela afeiçoou
a mão que assim te quis. Do resto,
do que de individualidade, porventura,

em ti existiria, se encarregou
a persistente erosão dos dias. De vago,
neutro olhar sem órbitas, permaneces
hirto, fitando sempre mais além
da morna penumbra que te envolve

no halo intemporal que é, do tempo,
o nexo único. Nesse olhar
de não ver tudo se inscreve,
repensa e adivinha: teus limites
e, ainda, o que excederia tua humana

estatura. Sem contornos, em sombra
e sono te diluis no que, de ti,
nunca saberemos. Porém, límpida
e escorreita, até nós chega a laboriosa
escrita que no papiro ias lavrando.

(de O Corpo de Atena, 1984)


PEDRO TAMEN

1. O escriba acocorado


Ele que escreve que não saibamos já,
olhos fitos no nada que por ciência tem?
Sob os ardores do sol burila só silêncio
que sustenta no colo
e onde cabe tudo.

(de Depois de Ver, 1995)

14.5.04

[SONETOS À SEXTA-FEIRA - no aniversário do fim duma sequência]

JORGE DE SENA

GÉNESIS


I

Afirmo e esqueço a qual serenidade
em mim persiste como a guerra breve
ao longo de anos que nenhuma neve
abrandará na terra. E tanta idade

é mera circunstância de igualdade.
Infeliz neve que a si própria deve
o esforço de pousar, de não ser leve
um tempo antes do gelo. E se alguém há-de

vi corromper o Sol da primavera,
que esqueça logo o projectar da Esfera
- e, só depois, a Sombra essencial.

Da corrução como estro e como guerra
a brevidade alastrará na terra.
Afirmo e esqueço. Afirmo esqueço a qual...

2/2/43

II

Nenhum alta te resta que o não sejas
no breve tempo entre morrer e estar.
E quando não estiveres, como desejas,
não menos pedra o vente há-de encerrar

a perspicácia anónima. Não vejas!
Não queiras adorar nem comparar,
porque não estão suspensos nas igrejas
pálidos do tempo ou sombras do lugar.

Como esta aurora, purgação dourada,
ara serás da noite já entrada,
que, enquanto altiva, a noite é mais funesta.

Tudo não és. Basta que as flores nocturnas
se humilhem, uma a uma, sobre as urnas.
Não entres mais agora: esse te resta.

18/2/43

III

Quando, mais novo, noutro renasceres,
hás-de ser Deus à idade abandonada.
Nunca melhor, apenas melhorada
a forma ritual de envelheceres.

Quando, mais velho, então, noutro morreres,
nem o não-ser te voltará ao nada.
Avançam já mais anjos. Descuidada
caçam-te a essência. Atiram-na. E viveres,

hás-de viver quer queiras quer não queiras.
Debalde, vir-a-ser ali caído,
imploras, gritas. Se um grilhão se parte,

outro te fazem de épocas inteiras.
E, porque, uma vez, foste prometido,
debalde encarnarás: hão-de matar-te.

26/2/43

IV

Assassinais, ó anjos, vosso amor;
a carnívoros dais quem só vos ama.
E para quê? Se sempre outro Senhor
vos criará mais outros - quem chama

vossa alegria de asas com o ardor
de Quem ordena coortes sobre a lama!
Do grande Amante que maior favor
que da inserção da pena sobre a escama?

Nadais, ó anjos para quê da morte,
e não sabeis de vós nem quanto sabe,
ou dela, o que passar e não suporte

o sangue eterno que das fauces pinga.
Nesse, que existe porque em Deus não cabe,
é com terror que o Sangue nele se vinga.

10/3/43

V

Temor o tens de ti, meu Deus, eu não.
Temor do amor que possas vir a ter
e de um gesto que faças sem saber
a quem atinges ou proteges. São

bem teus ainda, quando ao coração
reduzem o dever de não morrer
como homens que te percam. Mesmo ver
que a quanto te amam temes... Nenhum pão

aceitam puro em que a vingança esplenda.
A Terra pesa tanto! E a densa venda,
se ao peso dela cai, mostra-os - e vejo-te,

e que não és sem ela nem com ela.
Mas para eles até a ausência é bela.
Não temas: eu abrigo-te e protejo-te.

17/3/43

VI

De mim não falo mais: não quero nada.
De Deus não falo: não tem outro abrigo.
Não falarei também do mundo antigo,
pois nasce e morre em cada madrugada.

Nem de existir, que é vida atraiçoada,
para sentir o tempo andar comigo;
nem de viver, que é liberdade errada,
e foge todo o Amor quando o persigo.

Por mais justiça... - Ai quantos que eram novos
em vão a esperaram porque nunca a viram!
E a eternidade... Ó transfusão dos povos!

Não há verdade: o mundo não a esconde.
Tudo se vê: só se não sabe aonde.
Mortais ou imortais, todos mentiram.

14/5/44

(de Coroa da Terra, 1946)

13.5.04

ANTÓNIO FERREIRA

À VIRGEM DA LAPA


A esta lapa vimos, Virgem Santa,
Humildes, e devotos peregrinos.
Que os olhos sejam de te ver indinos,
ver o que o mundo todo alegra e espanta,

e que a pureza em nós seja tanta,
tua graça nos fará, Senhora, dinos
de ouvires nossos versos, nossos hinos,
que cada alma fiel te ofrece, e canta.

Grandes são teus poderes, tuas grandezas,
Novos sinais, Senhora, não esperamos:
despois de Deus, de ti tudo mais cremos.

Alimpa em nossas almas suas torpezas;
desfaze as névoas, com que nos cegamos;
e estes grandes milagres cantaremos.

(de Poemas Lusitanos, 1598 - edição crítica de T. F. Earle, Fundação Calouste Gulbenkian, 2000)
YEVGENY YEVTUSHENKO

FÁTIMA


Estive na festa de Fátima. Vendo como se empurravam nas bermas
cães, burros, jornalistas, embaixadores, turistas,
e ao longo das estradas, de joelhos ligados,
em todo o asfalto, de cabeça perdida o povo se arrastava.

Com imprecações, gritos, lágrimas, gemidos,
por poças, montes de esterco, cacos de vidro,
arrastava-se para que a bênção de Fátima
viesse ao povo e o pudesse ajudar.

Arrastam-se camponeses, amargura no rosto enrugado
como haveria no da mãe de Jesus Cisto
quando lhe devolveram, por fim, o filho crucificado,
tocando-lhe ao descer o seu corpo branco na cruz.

Arrastavam-se madalenas, torciam-se, gemiam, ofegavam,
e semeavam lágrimas, confiando nessa sementeira,
mas só sorriam anjos mudos e impertinentes
arrastando a sementeira às costas, como rapazes traquinas.

E nos automóveis pretos, louvados os Apóstolos,
com buzinas que passavam pelos saloios arrastando-se na poeira,
corriam, como para o futebol, os ideólogos do andar de rastos,
os polícias de casse-tête sendo super-indulgentes.

E no estádio, com a voz forte da Phillips,
o comércio da fé deixava cair a sua palavra quente
sobre o mar de cabeças confusas e chapéus de jornal,
oscilando trémulas como um prato de pudim.

Apelava o comércio, estendendo as mãos bem cuidadas,
na altura em que nas estradas pejadas,
que se arrastavam ao longe sobre joelhos invisíveis,
o poente se mostrava através duma neblina como sangue através de ligaduras.

E o povo arrastava-se. E os tristes camponeses não sabiam
que os pastores de rebanho, de submissa e simples fé,
não só não podem - tudo podem os grandes do mundo! -
como não pensam tirar os seus filhos da cruz...

(de Poiúchtchaia dámba, 1972 - tradução de Manuel de Seabra, in Antologia da Poesia Soviética, editorial Futura, 1973 - Yevtushenko havia estado em Portugal em 1967 para um recital em Lisboa)

12.5.04

Hoje, apesar da minha balda, apareceu o terceiro número da Terra da Alegria.
NUNO DE SAMPAYO

PALAVRAS


Palavras que se dizem, opacas faces, claros perfis,
Que se murmuram, ternas aves, violentos leopardos.

Que se imaginam, astros fantásticos,
Que se ocultam, floridas serpentes,
Que se procuram, peixes vagabundos,
Ou se inventam - refloração das mulheres,
Rodopio das esferas, horóscopos das sibilas.

(de O Eterno Instante, Morais editora, 1964 - Círculo de Poesia)
ARTHUR RIMBAUD

(...)
Agora, mergulho na maior devassidão possível. Porquê? Quero ser poeta e trabalho para me tornar visionário: vós não compreendeis nada e eu não sei se saberei explicar-vos. Trata-se de atingir o desconhecido através do desregramento de todos os sentidos. Os sofrimentos são enormes mas é preciso ser-se forte, ter nascido poeta, e eu reconheci-me poeta. Não é de modo algum culpa minha. É falso dizer-se: eu penso. Deveria dizer- se: sou pensado. - Desculpe o trocadilho. -
Eu é um outro. Tanto pior para a madeira que se descobre violino e zomba dos inconscientes que discreteiam sobre aquilo que pura e simplesmente ignoram. Não sois Mestre para mim. Dou-vos isto: será uma sátira como vós diríeis? É poesia? Fantasia, é-o sempre. - Mas, suplico-vos, não a sublinheis com o lápis nem - demasiado - com o pensamento:
Coração Supliciado
(..................................)

Isto não quer dizer nada. - RESPONDA-ME: para casa do sr. Deverrière, para A. R.
Saúdo-o, de todo o coração,
Art. Rimbaud

(excerto de uma carta dirigida a Georges Izambard, em Maio de 1871, quando tinha 17 anos - tradução de Ângelo Novo, Cartas do Visionário, Fora do Texto, 1995)

11.5.04

LEWIS CARROL

Então toda a nossa Vida é apenas um sonho
Visto difusamente na cintilação dourada
Através da corrente irresistível da escuridão do Tempo?

Debruçada para a Terra com angústia amarga,
Ou rindo-se de um espectáculo mais raro,
A flutuar de um lado para o outro.

Passamos à pressa o pequeno Dia do Homem,
E, do seu alegre meio-dia, não enviamos
Um olhar ao encontro do Fim silencioso.

(poema que antecede o prefácio a Sylvie e Bruno, tradução de João Costa, Livros do Brasil, 1991 - Dois Mundos)
SALVADOR DALI

El verdadero pintor es aquel que es capaz de pintar escenas extraordinarias en medio de un desierto vacío. El verdadero pintor es aquel que es capaz de pintar pacientemente una pera rodeado de los tumultos de la historia.

10.5.04

HANS MAGNUS ENZENSBERG

RAJADA


há palavras
leves
como sementes de álamo

erguem-se
levadas pelo vento
e voltam a cair

difícil agarrá-las
porque se afastam muito
como sementes de álamo

há palavras
que mais tarde talvez
removerão a terra

que espalharão sombra
uma sombra delgada
ou talvez não

(tradução de Eugénio de Andrade, in Trocar de Rosa, Regra do Jogo, 1980)
JORGE DE SENA

UM EPÍLOGO


Quando estes poemas parecerem velhos,
e for risível a esperança deles:
já foi atraiçoado então o mundo novo,
ansiosamente esperado e conseguido
- e são inevitáveis outros poemas novos,
sinal da nova gravidez da Vida
concebendo, alegre e aflita, mais um mundo novo,
só perfeito e belo aos olhos de seus pais.

e a Vida, prostituta ingénua,
terá, por momentos, olhos maternais.

(de Coroa da Terra, 1946)
GIÁNNIS RITSOS

Tudo é mistério -
a sombra da pedra
a unha do pássaro
a dobadoira
a cadeira
o poema.

(tradução de Custódio Magueijo, in Antologia, Fora do Texto, 1993)

9.5.04

[outros melros XVII]

CHARLES SIMIC

PRIMAVERA


Foi isto que vi - restos de neve no chão,
Três melros a espanejar-se,
E a minha vizinha que sai de casa em combinação
A pôr as camisas do marido a secar.

A aragem da manhã torna-lhe difícil pendurá-las.
Levanta-lhe a roupa bem acima dos joelhos,
Ela teve de parar o que estava a fazer
E deu uma bela gargalhada, enquanto se tapava.

(tradução de José Lima, in Di Versos 2 - Primavera-Verão de 1997)
ABELARDO LINARES

NÃO QUERO


Não quero outro abraço a não ser o da tua sombra
de metal humedecido nem outro sorriso
a não ser o das dez e dez no mostrador do meu relógio.
O meu cansaço é um cansaço de pássaro
com uma única asa caindo até ao centro da terra.
Esperar por ti foi tão belo como a aurora boreal
reflectida na fria pupila dos pinguins.
Por ti valeu a vida, por ti a vida foi
aquilo que esperamos e nunca chega, para além da vida.
Mas alguns sonhos não são senão o sonho de um punhado de areia
e o meu olhar contempla agora as infinitas costas do mundo.

(tradução de Joaquim Manuel Magalhães, in Trípticos Espanhóis 1º, Relógio d'Água, 1998)