20.12.10

[ao cuidado do Professor Cavaco]

PAI AMÉRICO

ERA de uma vez num hotel de categoria, em certo lugar da nossa Pátria muito amada. Corria o verão. Na terra havia mais hotéis; muitos hotéis, todos povoados – muito que falar e pouco que fazer. Nestes sítios a que chamam termas, o que mais custa é matar o tempo. Já assim era com os romanos. Lança-se mão de tudo. Cada dia vem com seu programa e todos com infinitos números. Eis um. Naquele hotel e naquele dia foi assim.

Um grupo de senhoras da nossa melhor sociedade, como a Imprensa costuma pôr e elas gostam, levanta-se e vai em roda colher donativos, para um almoço aos farrapõezitos da localidade. Contaram o dinheiro, hilariantes e entregaram à Gerência, com instruções do almoço. No dia seguinte aparece o aviso pregado no lugar deles, a comunicar que as Ex.mas Senhoras Donas Fulana, Sicrana e Beltrana, não se pouparam a trabalhos e que vão oferecer hoje, às tantas, um almoço a doze crianças pobrezinhas. Tudo está à espera. Imediatamente após o serviço dos hóspedes, a Gerência manda armar a mesa em uma sala do dito hotel com quatro janelas para a rua, escancaradas, para que se veja bem. A mesa apresenta-se com tudo; absolutamente tudo quanto diz respeito a um almoço de circunstância. Estão doze talheres. Um terceto, coloca-se em posição. Os criados aprumam-se. As pequeninas vítimas entram na sala. Vai começar o sacrifício. A seguir à sopa vem o primeiro prato, vem o segundo, vem sobremesa; – tormentos que as crianças não merecem a ninguém. Elas não saboreiam. Não sabem estar. Nada lhes aproveita. É um triste suplício, como os pequeninos semblantes dizem.

A sinfonia toca. Os creados rodopiam. As senhoras da comissão miram-se, extasiadas; e dezenas de outros farrapõezitos do lugar, que não foram convidados, espreitam pelas janelas, em bicos-de-pé, esfaimados!

Terminou. Os pequeninos torturados estão amarrados às cadeiras, cada um à sua, até passar a hora dos discursos. Em regra, as senhoras destas comissões, levam muito a mal que não se lhes diga nada, e um senhor da assistência exaltou o acto.

Novo aviso elucidou os hóspedes de quanto se houvera gasto e assim acabou o dia ao qual, no meu entender, não se pode chamar perfeito. Ora muito bem. Estamos em frente de uma das inúmeras paradas de caridade que os olhos dos nossos tempos andam afeitos a ver, e ninguém dá fé do mal que se pratica no mundo, com esta espécie de bem-fazer.

Nenhum de entre a assistência era analfabeto; tudo gente de certa responsabilidade. Mais. O senhor do discurso foi, até, buscar à doutrina de S. Paulo dois pontos que tratam da esmola e com eles, enalteceu a cerimónia! Ninguém viu o mal.

Tudo fez coro, acharam muito certo.

Eu estava. Assisti a tudo quanto se fez e quanto se disse, dum cantinho da sala, muito triste por me encontrar só; – tão perto e tão distante.

Se me tivessem dado o dinheiro e a liberdade de agir, havia de chamar todas as crianças pobres do povoado – todas, porque todas necessitavam, e dar-lhes uma refeição quente, à maneira do povo, só que um nadinha mais abundante e melhor adubada; – era dia de festa. Havia de os colocar em sítio onde estivessem absolutamente livres; comentassem a seu modo o sabor do caldo e do pão; falassem uns para os outros; rissem a bandeiras despregadas, pois seria verdadeiramente uma festa deles e não festança dos mais.

Havia de mandar os criados mai-la sinfonia para os seus respectivos lugares, que ele não há no mundo música mais bela do que a feita com as notas alegres da criança pobre, diante dum prato de sopa quente, servido com muito amor. Assim havia de fazer. Mais. Enquanto perguntasse a cada um o nome que tem, havia de perguntar ao mundo do nosso tempo, quando é que chega a hora em que cada criança tenha dentro da sua casa e em cima da sua lareira, uma tijela de caldo e um bocado de pão. Então, sim, poderíamos fazer festas, que a Caridade folga com a justiça, como ensina a verdade eterna.

Salvo melhor opinião dos mestres, afigura-se-me que não se devia jamais mostrar à criança pobre um mundo a que não poderá honestamente chegar, nem possuir. As orgias desmoralizam; são fontes de revolta e fazem revoltados. Fica-nos bem ser pobres e ensinar a criança a amar e a respeitar o seu estado de pobreza, não venha ela amanhã a cair na miséria e a fazer um mundo de miseráveis.


(de Doutrina, gráficas da Casa do Gaiato, 1956)