16.5.11

CHARLES SIMIC


CHEGADA TARDIA


O mundo já aqui estava,
Plácido na sua estranheza.
Só faltava que chegasses
No comboio do fim da tarde
Aonde ninguém te esperava.

Uma cidade que ninguém recordava
Por causa da sua insipidez,
Onde te perdeste
Procurando um lugar para ficar
Num labirinto de ruas idênticas.

Foi então que ouviste,
Como se fosse a primeira vez,
O som dos teus passos
Debaixo do relógio de uma igreja
Que tal como tu parara

Entre duas ruas vazias
Brilhando ao sol da tarde,
Dois pedaços modestos de infinito
Para te surpreenderem
Antes de retomares a caminhada.


(de Previsão de Tempo para Utopia e Arredores, tradução de José Alberto Oliveira, Assírio & Alvim, 2002 - documenta poetica)

15.5.11

[para uma antologia de bicicletas – 18]

JOSÉ MIGUEL SILVA


EM LUCCA, AS BICICLETAS


Mimados animais de estimação,
em Portugal os automóveis são felizes,
agradecem, quase incrédulos, a sorte
de lhes terem ofertado em passerelle
o mais honroso dos cenários e desfilam
como príncipes de crómio pelas ruas
desertadas de nocivos habitantes.

Aqui sentir-se-iam humilhados
pela ordem de ceder ao musculoso
bipedismo de pessoas a passagem
ou, pior, à irritante placidez
das bicicletas, traquitanas que lograram,
por estranho que pareça, conquistar
a simpatia dos estúpidos humanos
que povoam (é incrível!) a cidade.

Cruelmente desprezados, racionados
como párias, em Lucca os automóveis
não encontram um passeio onde encostar
a fatigada suspensão, uma sombrinha
de jardim, uma oficina, o refrigério
combustível de um amigo que socorra
a sua sede de viver rapidamente.


(de Erros Individuais, Relógio d'Água, 2010)