23.2.12


PIER PAOLO PASOLINI


AOS ESTUDANTES GREGOS, DE REPENTE

Recordem-se, jovens vivos (não falo
aos mortos) que é jovem também
o tempo para vós. Aqui olham-vos
como velhos, os que têm a vossa consciência

e também a vossa idade. Um dia,
que para estes vossos irmãos é hoje,
sabereis também vós que o pior inimigo
que vos fere e vos mata é melhor

do que os que mandam neste cinzento
dia do futuro. Os Fascistas não tocam
a alma. Eu sei que no meu país
por vinte anos o tentaram: mas rapazes

e homens ficaram iguais aos de todos os séculos.
Matai-os, metei-os na prisão como
fazem eles. São poucos. Secam
e tornam a crescer como a grama.

O povo era o trigo que não morre.
Agora começa a morrer. Alguém
lhe tocou a sua alma. Rapazes e homens
vivem, selvagens, como num sonho.

São como loucos, não conhecem piedade,
giram, o rosto branco como renegados
por um pouco de riqueza e liberdade
que talvez quisessem mas que não ganharam.

Deram-lha, não de boa mente,
os velhos Antifascistas que são os autênticos Fascistas...
que são os líderes, da Aculturação e não só
tocam as almas mas também as sugam no Centro

como vampiros, deixando os corpos cobertos de sombra
e tísica branca, megeras com grandes cabeleiras de merda
com mais nenhum outro amor do que o do Motor,
porque não? que fazer do Sexo em liberdade?

… … … … … … … … … … … … … …

Amadurece nos campos, entre as pedras, o trigo
com o silêncio e o canto das cigarras:
é ali que nascem os filhos obedientes, os soldados
e os heróis como os de entre vós que estão mortos.



(in Pasolini, Poeta, [tradução,] apresentação e selecção de Manuel Simões, Plátano editora, 1978 – Sagitário Especial)

22.2.12


INGEBORG BACHMANN


SALMO

1.

Calai-vos comigo, como todos os sinos se calam!

Na placenta do medo
a escória procura alimento novo.
Sexta-feira santa, pendurada no firmamento,
uma mão, faltam-lhe dois dedos,
não pode jurar que tudo,
tudo aquilo não aconteceu e que nada
acontecerá. Mergulha no vermelho das nuvens
afasta os novos assassinos
e liberta-se.

De noite nesta terra
alcançar as janelas, afastar os linhos,
desvendando a intimidade dos doentes,
uma úlcera suculenta, intermináveis dores
para todos os gostos.

Os carniceiros sustém, enluvados,
a respiração dos despidos,
no umbral a lua cai ao chão –
Deixa ficar os cacos, a asa ...

Estava tudo a postos para a extrema-unção.
(O sacramento não pode consumar-se.)

2.

Como tudo é vão!
Arrasa uma cidade,
ergue-te do pó dessa cidade,
assume um cargo
e finge,
para evitares expor-te.

Cumpre as tuas promessas
diante de um espelho cego no ar,
diante de uma porta fechada ao vento.

Virgens são os caminhos nas escarpas do céu.

3.

Oh olhos, queimados na terra, silo do sol,
carregados com o peso da chuva de todos os olhos,
e agora enredados, tecidos
pelas trágicas aranhas
do presente...

4.

Coloca uma palavra
no vale da minha mudez
e planta florestas de ambos os lados,
para que a minha boca
fique toda à sombra.


(de O Tempo Aprazado, tradução de Judite Berkemeier e João Barrento, Assírio & Alvim, 1992 – Gato Maltês)

21.2.12


MANUEL BANDEIRA


SONHO DE UMA TERÇA-FEIRA GORDA

Eu estava contigo. Os nossos dominós eram negros, e negras eram as nossas máscaras.
Íamos, por entre a turba, com solenidade,
Bem conscientes do nosso ar lúgubre
Tão contrastado pelo sentimento de felicidade
Que nos penetrava. Um lento, suave júbilo
Que nos penetrava… Que nos penetrava como uma espada de fogo…
Como a espada de fogo que apunhalava as santas extáticas!

E a impressão em meu sonho era que se estávamos
Assim de negro, assim por fora inteiramente de negro,
– Dentro de nós, ao contrário, era tudo claro e luminoso!

Era terça-feira gorda. A multidão inumerável
Burburinhava. Entre clangores e fanfarra
Passavam préstitos apoteóticos.
Eram alegorias ingênuas ao gosto popular, em cores cruas.
 Iam em cima, empoleiradas, mulheres de má vida,
De peitos enormes – Vênus para caixeiros.
Figuravam deusas – deusa disto, deusa daquilo, já tontas e seminuas.
A turba, ávida de promiscuidade,
Acotovelava-se com algazarra,
Aclamava-se com alarido
E, aqui e ali, virgens atiravam-lhes flores.

Nós caminhávamos de mãos dadas, com solenidade,
O ar lúgubre, negros, negros…
Mas dentro em nós era tudo claro e luminoso!
Nem a alegria estava ali, fora de nós.
A alegria estava em nós.
Era dentro de nós que estava a alegria,
– A profunda, a silenciosa alegria…


(de Carnaval, 1919)

20.2.12


EDMOND JABÈS


A MÁSCARA E OS DIAS

I

Não se constrói sobre a pedra côncava. (Ainda menos sobre a neve dos picos?)
As recordações vêm aumentar o seu poder sobre o homem à medida que o objectivo se esfuma.
(Muralhas de sempiternas manifestações de força. Basta a obstinação de uma lágrima, basta um nada de ar decidido para que o ferimento seja mortal.)
Amanhã é o dia dos ladrões.
Dos nossos múltiplos rostos, o único persiste; rochedo onde se apoia a fadiga do mar.

II

O porto mantém a sua palavra. (Manterá o cinto dos afogados?)
Na beira do abismo, cintilante coroa de exílio.
Os mortos participam connosco na eclosão dos enigmas em garfo que arranham o espaço.


(in A obscura Palavra do Deserto – Uma Antologia, selecção e tradução de Pedro Tamen, livros Cotovia, 1991 – original de Je Bâtis ma Demeure, 1959)

VASCO GATO


SCALINATELLA

7.

Tinha do mundo a imagem de
um vermelho espesso, grumoso.
Não descobria nele razões
para dissociar o crime
do prazer.
Tudo era apenas
algo que apetecia trincar
para lhe extrair todo o sumo,
todo o benefício.
Desde os quinze anos que
se decidira, todas as manhãs,
a esmagar morangos com os olhos.


(de Napule, Tea for One, 2011 – colecção matéria mínima)

19.2.12


MARIANNE MOORE


A EMBALSAMADA POLÍTICA

Nada há a dizer a teu favor. Guarda
o teu segredo. Oculta-o sob a tua plumagem
          áspera, necromante.
                    Ó
ave, cujas tendas foram "toldos de fio
egípcio", a vaga inscrição em ziguezague da Justiça
          – inclinando-se como uma bailarina –
                    há-de mostrar
a força da sua soberania outrora viva?
Dizes que não, e transmigrando do
          sarcófago, tu és como o vento,
                    a neve,
o silêncio à nossa volta, com a voz de um moribundo,
semi-titubeante e semi-senhoril, tu espias
          em redor. Íbis, em ti qualquer virtude
                    não
existe – tu, que estás viva, mas tão silenciosa.
O comportamento discreto não é agora a síntese
          do bom senso do estadista.
                    Mesmo
que fosse a encarnação da graça morta?
Como se uma máscara da morte pudesse alguma vez substituir
          a excelência imperfeita da vida!
                    Lenta
até para reparar no íngreme e rígido equilíbrio
do teu trono, hás-de ver a forte distorção
          dos sonhos suicidas
                    passar
cambaleante em sua direcção e com o bico
atacar a sua própria identidade, até
          o inimigo parecer amigo e o amigo parecer
                    inimigo.


(in Poemas de Marianne Moore e Elisabeth Bishop, tradução de Maria de Lourdes Guimarães, Campo das Letras, 1999 – colecção Aprendiz de Feiticeiro)