19.7.03

[tenho saudades de Assis]

PAUL CELAN

Assis

Noite úmbrica
Noite úmbrica com a prata de sino e folha de oliveira.
Noite úmbrica com a pedra que para aqui trouxeste.
Noite úmbrica com a pedra.

Mudo, mudo o que entrou na vida.
Esvazia e enche os jarros.

Jarro de terra.
Jarro de terra que traz em si a mão do oleiro.
Jarro de terra que a mão de uma sombra para sempre fechou.

Jarro de terra com o selo da sombra.

Pedra, pedra para onde quer que olhes.
Deixa entrar o burrico.

Animal a trote.
Animal a trote na neve espalhada pela mais nua mão.
Animal a trote adiante da palavra que se fechou.
Animal a trote que vem comer o sono à mão.

Brilho, brilho que não quer consolar.
Os mortos, Francisco, ainda pedem esmola.

(in As Escadas não têm Degraus, 3, livros Cotovia - Março de 1990 - tradução de João Barrento)

JOSÉ SANTIAGO NAUD

Aqui, onde a vontade de fazer bonitinho
cobriu o tempo, outro tempo descobre
e as pedras se desnudam ao sol
inclementes nas colinas suaves.
E assim apareces ao olho atento: o esqueleto
enorme
resistindo, na inércia do inefável.
Os vôos da alma.

*

A Giotto

Mestre, aqui
o túnel de luz da nave superior
preparou a irradiação concêntrica
de Scovegni. E a graça consentida
à nave inferior compreende
a visão total do ciclo. Anjos
de escolas diferentes se reúnem
para voltejar iluminados, como aves
num mesmo céu azul.
Aqui
aprendemos o tempo, a partir do Poverello
compreendemos o pastor, e a sabedoria
de ser depois de ti
é a verdade simples da afirmação
de que há um corpo para cada alma
e uma alma para cada corpo. Em ti
se soldam a sóbria elegância de Simone Martini
e o drama de Pietro Lorenzetti, que da paixão
esquece a matemática suave dos comparsas
e atira desesperados os anjos a voar
para dizer como um trovão azul
que Deus morreu. E os muitos outros
já podiam te anunciar, como teus discípulos
te anunciavam. Ah,
mas não toques as paredes em que a cor
se abismou, e no tempo
o chumbo iludiu a realidade do ouro.
Tira as tuas sandálias, mestre,
para entrar nesses lugares. Ali
mora Cimabue
que fez do rei o homem.

(de Conhecimento a Oeste, Moraes editores, 1974 - Círculo de Poesia)

SÃO FRANCISCO

Altíssimo, omnipotente, bom Senhor,
São teus o louvor, a glória, a honra
E toda a bênção
Só a ti Altíssimo, são devidos;
E homem algum é digno
De te mencionar.
Louvado sejas, meu Senhor,
Com todas as tuas criaturas,
Especialmente o Senhor irmão Sol,
Que clareia o dia
E com a sua luz nos alumia.
E ele é belo e radiante
Com grande esplendor.
De ti, Altíssimo, é a imagem.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pela irmã Lua e as Estrelas,
Que no céu formaste claras
E preciosas e belas.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pelo irmão Vento,
Pelo ar nublado
Ou sereno e todo o tempo,
Pelo qual dás sustento às tuas criaturas.
Louvado sejas, meu Senhor
Pela irmã Água,
Que é muito útil e humilde
E preciosa e casta.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pelo irmão Fogo.
Pelo qual iluminas a noite.
E ele é belo e jucundo
E vigoroso e forte.
Louvado sejas, meu Senhor,
Por nossa irmã a mãe Terra,
Que nos sustenta e governa,
E produz frutos diversos
E coloridas flores e ervas.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pelos que perdoam por teu amor,
E suportam enfermidades e tribulações.
Bem aventurados os que sustentam a Paz,
Que por ti, Altíssimo, serão coroados.
Louvado sejas, meu Senhor,
Por nossa irmã a Morte corporal,
Da qual homem algum pode escapar.
Ai dos que morrerem em pecado mortal!
Felizes os que ela achar
Conformes à tua santíssima vontade,
Porque a morte segunda não lhes fará mal!
Louvai e bendizei a meu Senhor,
E dai-lhe graças,
E servi-o com grande humildade.
POETAS ESCANDINAVOS (II)

PENTTI SAARIKOSKI

Nasceu em 1937, na cidade Filandesa de Impilahti.
Estudou Literatura e Grego na Universidade de Helsínquia, mas não chegou a receber nenhum grau académico.
Começou a publicar em 1958 e manteve durante dois anos uma coluna num jornal conservador, sob o pseudónimo Nemä, com o qual ganhou notoriedade pelos seus textos satíricos.
Considerado como uma das figuras centrais da poesia finlandesa das décadas de 60 e 70, foi também um brilhante tradutor.
De personalidade inconstante, viajou muito, aderiu ao partido comunista, casou quatro vezes. Interessou-se pela vida dos primeiros cristãos, chegando mesmo a traduzir o Evangelho de Mateus.
Alguém afirmou que ele era “um Rilke com sentido de humor”.
Morreu de cirrose hepática em Agosto de 1983. O seu túmulo, no mosteiro Ortodoxo de Valano em Heinävesi é local de afluência dos seus leitores.

Nämä runot on kirjoitettu hänelle
hänen silmiensä alla.


Estes poemas foram escritos para ela
e diante dos seus olhos

(de En soisi sen päättyvän, 1968 - tradução minha a partir de uma versão inglesa)

A vida é dada ao homem
para que ele considere com cuidado
a situação em que há de morrer,
os céus cinzentos passam,
o céu é um jardim suspenso
e a terra vai à boca como o pão.

(de Runot ja Hipponaksin runot, 1959- tradução minha a partir de uma versão inglesa)

O Cavalo do Louco

Comprei um cavalo a um louco.
Tinha-o desenhado ele mesmo
e era de resto um cavalo perfeitamente vulgar
excepto os olhos que ficavam nas ventas.
Tinha-o feito assim
de propósito: para as pessoas estarem bem certas
da sua loucura
e comprarem melhor.
Eu comprei.
Pensei no cavalo: ele ficaria no pinhal
à tarde quando o sangue corre das orelhas do sol.

(in Babel - Fascículos de Poesia, 1 - Outubro de 1986 - tradução de Egito Gonçalves)
POETAS ESCANDINAVOS (I)

LASSE SÖDERBERG
Nasceu em 1931 em Estocolmo, Suécia.
A sua poesia está marcada pelo seu carácter viajante. Traduziu para sueco diversos autores de língua espanhola.

PÔR-DO-SOL
(Granada)


Erva,
voz queimada.

Poço,
cravo partido.

Céu,
fato branco manchado de sangue.

DOIS HOMENS
(Francis Bacon)


A carne é sempre mártir, lacerada.
Nos ritos nupciais via a chacina,
tanto prazer em glória tão mesquinha.
Uma só causa: a carne deformada.

Baixo ventre mental indecifrado,
milagre inferior que mais alteia
domínio do sexo feito ideia.
Eis o exemplo por Bacon encontrado:

dois homens nus num leito descomposto,
um dos dois é o pobre, o outro o rico,
o sedutor seduz o seduzido,

não importa qual deles toma o gosto
ao poder do seu cravo já imposto
sobre a carne do outro: esse que ri.

(de Coração de Papel, tradução colectiva, revista por Ana Luísa Amaral e Gonçalo Vilas-Boas - Quetzal editores, 2001 - Poetas em Mateus)

SOBRE A ARTE DE MANEJAR UM CADÁVER

"Su cadáver estaba lleno de mundo"
César Vallejo


Começaram por levar o cadáver
de helicóptero desde um descampado,
e para que todos o vissem depositaram-no
seminu em cima de um lavadouro.

Fotografaram os restos mortais.
Enterraram-nos depois em qualquer parte
para que não se movessem
e mais ninguém os pudesse ver.

Porém na sua ausência o medo cresceu
como o cabelo e as unhas dos mortos.
Desenterraram o cadáver e cortaram
um polegar como prova da sua morte.

Incineraram depois o corpo
e enterraram algures as cinzas
para que não pudessem sublevar-se
e formar um exército invisível.

Passará muito tempo e o medo
continuará a enterrar e desenterrar
o cadáver que comanda uma guerra de morte
em Santa Cruz e noutras partes do mundo.

(Tradução de Casimiro de Brito, in 21 Poetas Suecos, coordenação de Ana Hatherly e Vasco Graça Moura, Vega, 1981?)

18.7.03

Hoje, nos jardins da Gulbenkian, vi um velhote parar de repente para olhar seis pardais e um pombo que chapinhavam num pouco de água.
Fiquei a olhá-los, velho e pássaros. E fiquei com a sensação de que o acto de contemplação daquele homem tinha sido provocado por alguém que ele viu, há muitos anos atrás, a olhar deslumbrado, sem pensar em mais nada, senão em simples pássaros a chapinhar na água.

17.7.03

MARIA MANUELA MARGARIDO

Nasceu em 1925, na Roça Olímpia, ilha do Príncipe. Estudou Ciências Religiosas, Sociologia, Etnologia e Cinema na Sorbonne de Parisonde esteve exilada. Foi embaixadora do seu país junto de várias organizações internacionais e assessora do presidente de Portugal, Mário Soares.

A ilha te fala
de rosas bravias
com pétalas
de abandono e medo.

No fundo da sombra
bebendo por conchas
de vermelha espuma
que mundos de gentes
por entre cortinas
espessas de dor.

Oh, a tarde clara
deste fim de Inverno!
Só com horas azuis
no fundo do casulo,
e agora a ilha,
a linha bravia das rosas
e a grande bab negra
e mortal das cobras.

(de Alto como o Silêncio, 1957 - reproduzido em Bendenxa)

SÒCÒPÉ

Os verdes longos da minha ilha
são agora a sombra de ocá,
névoa da vida,
nos dorsos dobrados sob a carga
(copra, café ou cacau - tanto faz).
Ouço os passos no ritmo
calculado do sòcòpé,
os pés-raízes-da-terra
enquanto a voz do coro
insiste na sua queixa
(queixa ou protesto - tanto faz).
Monótona se arrasta
até explodir
na alta ânsia da liberdade.

(in Poetas de S. Tomé e Príncipe, 1963 - reproduzido em No Reino de Caliban II)
MARCELO DA VEIGA

Nasceu em 1892 na ilha do Príncipe, mas cedo passa a viver em Lisboa. Foi um convicto activista anti-colonial e apesar de ter vivido à margem das movimentações políticas, chegou a estar preso em Angola.
Morreu em 1976, na sua terra natal, deixando vasta obra dispersa por jornais e outras publicações, parcialmente reunidas após a sua morte.

O BATUQUE
(fragmento)

I
Nestas noites assim de tanto frio,
Noites de nostalgia,
Noites de medo e azar
Em que o vento p?la serra uiva sombrio,
A minha alma repleta de agonia
Voa aflita p?ra o meu distante lar
Noites da minha terra!...
Ébrias de encanto e de perfume que erra...
Noites faulhando lume qual se os astros
Descessem e na terra então, de rastros,
Reluzissem!

(in No Reino de Caliban II, Plátano editora, 3ª edição, 1997 - organização de Manuel Ferreira)

COSTA ALEGRE

Numa ilha do equador
Onde florescem palmas e cacoeiros
E têm murmúrios doces os ribeiros,
Nasceu um sonhador,
Um visionário, asceta,
Alma branca, de flor,
Que o destino fadou e sagrou poeta.

Menino e moço ainda,
Como a ave que bate a asa esperta e linda
Mal pressente na voz primeiro canto,
Deixou um dia, rindo, sem um pranto,
A sua ilha que o sol afaga e alinda.

Alegre lhe chamaram;
Para a glória o fadaram,
P?ra triunfador nasceu,
Mas como a ave que pelo espaço corre
E, após primeiro trilo, cai e morre,
Costa Alegre morreu!

(in Poetas de S. Tomé e Príncipe, 1963 - reproduzido em No Reino de Caliban II)

A NOSSA GERAÇÃO

A nossa geração trouxe a Mensagem
Que gerou o sonho e trouxe a Ideia...
Ela fica (semente como a areia),
Que o tempo leva e espalha na passagem.

Podemos partir. É bem tarde já.
A seara cresce e rumoreja ao vento.
Que mais alegria ou contentamento?
Partamos! A outra vem e colherá!

Amadora, 30-9-1965

(in Bendenxa / 25 poemas de São Tomé e Príncipe para os 25 anos de Independência, editorial Caminho, 2000 - organização de Inocêncio Mata)
FRANCISCO JOSÉ TENREIRO

Nasceu em 1921, em São Tomé. Desde muito novo em Lisboa, onde fez os seus estudos. Doutorou-se em Ciências Geográficas, área em que publicou importantes contributos para o desenvolvimento da sua terra natal.
A sua obra é marcada pelo Neo-Realismo e é ele o introdutor da negritude na língua portuguesa.
Morreu em Lisboa, em 1963.

CORAÇÃO NA VIDA

1
No coração da vida
pus meus olhos de água
e as paisagens rosto suave
da mãe sempre procurada.

De mansinho coloquei
no coração da vida meu próprio coração.

Coração menino e sem lágrimas
Coração pequeno, coração de voz clara.

Pobre coração
sem a angústia do amanhecer das planícies calvas
ou a amargura crepitante das savanas em brasa.

Coração na vida engrenado
coração no coração lançado
fugido poema escrito na sinfonia das gargalhadas hiantes
servidas na bandeja ritual-veneno da civilização.

Coração na vida lançado
era uma vez coração...

2
Foram os gestos e as palavras.

Foram os gestos
que substituíram no dicionário da humanidade
amor por ódio
liberdade por servidão
beijo por Freud
loucura por amargura
que em vez de criança dizem vergonha
de coração dizem velho instrumento de corda que dava açucar pilé e
[músicas líricas hoje obsoletas.

Foram as palavras que levaram
ao gesto frio de colocar ao pescoço quente de uma mulher a corda
[da forca
o gesto indiferente de premir o botão assassino da câmara
[de Chessman
o gesto amor pago das noites de solidão
o gesto de criança pedindo pão a seios enxutos
o gesto da escravidão...

Foram os gestos e as palavras
que mataram o meu coração.

3
Coração cadáver porque bates e porque esperas?

1960
Lisboa


(de Coração em África, incluído na Obra Poética, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1991)
COSTA ALEGRE

Nasceu em 1864 “no sítio da Capella na freguesia da Trindade” na ilha de São Tomé.
Veio, ainda criança, estudar para Lisboa. Aluno sempre brilhante, será dos melhores alunos do seu tempo na Escola Médico-Cirúrgica.
A sua obra, entre outras características, é marcada por uma contraditória tensão entre o assumir e o repudiar da sua cor de pele.
Não publicou nenhum livro em vida, mas pode ser considerado um percursor do(s) simbolismo(s), mesmo antes de António Nobre ou de Eugénio de Castro.
Morreu em 1890, em Alcobaça, com 26 anos. O seu cortejo fúnebre, entre Santa Apolónia e o cemitério dos Prazeres, reuniu mais de mil pessoas.

IMPOSSÍVEL

Basta. O teu pranto enxuga, ó minha branca fada!
És bela como a luz e como a luz és pura,
Contudo não me encanta a doce formosura,
Que em tua face tens de prantos orvalhada!

O pranto de mulher é pérola nevada!
Ao sorvê-la consola, é plena de doçura,
Depois, Laura, depois... ai! flor, quanta amargura
Às vezes não contém a jóia delicada!?

São íntimas irmãs a mulher e a mentira,
Não creio em ti, não creio! Eu já sonhei que vira
Uma mulher chorando eterno amor jurar-me.

Acreditei! mas foi lograda a minha esperança...
Amar alguém! amar! Impossível, criança,
Eu não amo ninguém, e ninguém pode amar-me.

8 de Dezembro de 1884

AS DUAS RIVAIS

- O desespero, que minha alma traga!
Dura e fatal contradição, que chega
A endoidecer, e a inteligência assombra!
Deixar a luz para viver na sombra! -
Suspira a branca, que a chorar se cala.
Responde a negra de harmoniosa fala:
- Mas é que a luz, ai! muita vez nos cega!
Mas é que a sombra muita vez afaga!
Branca: a luz fere; negra: a sombra embala.

(de Versos, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1991)
PAULO JORGE FIDALGO

S. TOMÉ

Pensámos que sem nós a ilha
não resistiria ao furor do mar.
Ano a ano a dúvida magoou-nos mais.
Levaram-nos a outros portos.
Houve barcos e coisas que recordamos facilmente
com alguma alegria.
À ilha, ponto minúsculo de nossas vidas,
jamais voltámos.
Embora a tenhamos no corpo.

(de Síntese Poética da Conjuntura, Hiena editora, 1993)
As notícias aceleraram as entradas que se seguem...

15.7.03

http://wbtest.blogspot.com/

Finalmente descobri um blog com mais poesia do que o meu!!
ERASMO

Fico a saber pelos blogues (agora já não sei bem quais...) que Paula Bobone continua a fazer sucesso com as suas pretensas etiquetas (“enquanto as etiquetas etiquetam, os relógios tiquetaqueiam”, dizia o O’Neill) e que o Expresso publicou (parece que com alarido, mas eu não frequento hebdomadários...) um manual de boa conduta, ou lá o que é.
Ora os factos podiam muito bem ter passado despercebidos aos meus ilustres neurónios, mas não é que estes se lembraram (imaginem...) dum livrito que tenho aqui do bom do Erasmo de Roterdão (Roterdão, 1466? - Basileia, 1536) e do qual seleccionei uns trechos (quase...) aleatoriamente?

(...)
Ter ranho no nariz, é próprio de um homem desmazelado e disso se acusou Sócrates, o filósofo. Assoar-se à boina ou a uma banda de roupa é próprio de um camponês; ao braço ou ao cotovelo, de um vendedor de salgados. Mas não é mais asseado assoar-se à mão para depois a limpar às roupas. É mais decente servir-se de um lenço, afastando-se um pouco se estiver presente alguma pessoa de mérito. Se nos assoarmos a dois dedos e cair ranho por terra, é preciso pôr-lhe o pé em cima. Não é conveniente respirar ruidosamente pelas narinas, o que denota um temperamento colérico; e ainda menos roncar, o que é prova de violência - sobretudo se isso se tiver tornado um hábito, só desculpável nos asmáticos e nos que têm dificuldade em respirar. É ridículo falar pelo nariz - o que é próprio dos que tocam gaita de foles e dos elefantes; franzir o nariz é hábito dos bufões e dos palhaços.
(...)
É preciso ter o cuidado de ter os dentes limpos; embranquece-los com a ajuda de pós é completamente efeminado; esfregá-los com sal ou alúmen faz mal às gengivas; lavá-los com urina é um costume espanhol.
(...)
Não se deve ser curioso em relação aos segredos dos outros, e se os teus olhos ou orelhas surpreenderem algum procura ignorar o que ficaste a saber.

(de A Civilidade Pueril, tradução de Fernando Guerreiro, editorial Estampa, 1978)
POESIA E BLOGS (I)

PEDRO MEXIA

Nasceu em 1972
Até agora: começou (e terá acabado?) a tirar um curso de Direito; foi activista do DNJovem; fez livros a brincar; fez livros a sério (6: 4 de poesia sua e 2 compilando poesia de outros - todos muito bons...); teve um blog, com mais gente e agora tem um blog sozinho, o Dicionário do Diabo.
Além disso, fico a saber que, apesar de ter uma coluna no Diário de Notícias e de, quer como poeta, quer como crítico literário ser dos mais elogiados da sua idade não é nada conhecido (eu é que devo andar distraído...).

[o que se segue são poemas soltos, mas cada livro de Mexia organiza-se numa estrutura própria, pelo que aconselho a sua leitura por inteiro]

OS VASOS PARTIDOS

Este vaso partido já não tem dentro
e fora, já não contém, não limita,
não transborda. A causa deste vaso
e o seu destino confundem-se
nos estilhaços de uma história
há muito escrita. Dentro do vaso
houve génio, memória, uma geração
intemporal, mas nas suas ruínas
apenas um espírito que nos abandona.

TRÊS TEORIAS

As nuvens desenham figuras.
O céu em volta das nuvens desenha figuras.
Os olhos desenham sempre figuras no céu.

(de Duplo Império, 1999)

TODOS CONTRA TODOS

A infância é uma arena de jogos
e todos, rotativamente,
éramos adversários
as regras fixas, o propósito curto,
a disposição honesta.

Aldeia de irmãos, tínhamos do nosso lado
o far-west, partíamos canteiros
com sardinheiras e, como alquimistas,
fazíamos um ouro secreto
apenas para nosso uso.

Na adolescência,
dissemos, mudavam as tácticas
e as intenções mas não
as regras. Mas a adolescência
acabou, os jogos são formas
de vingança e agora
jogamos todos contra todos.

(de Em Memória, Gótica, 2000)

APRENDIZAGEM
(decalque de e. e. cummings)


o eclesiastes disse-

-lhe:ele não podia
acreditar (nietzche

disse-lhe;ele
não queria acreditar
nisso)cesare

pavese
certamente disse-
-lhe,e jacques
(sim

senhora)
brel
e até
(acredite
ou
não)você
lhe disse: eu disse-
-lhe;nós dissemos-lhe
(ele não acreditou, não
senhor)foi preciso
que o céu lhe caísse
muito justa-

mente
em cima da cabeça:para dizer-

-lhe

[n. do a.: “a partir da versão portuguesa do poema ‘plato told’ por Jorge Fazenda Lourenço”]

(de Avalanche, edições Quasi, 2001)

LEITURAS OBRIGATÓRIAS

Vê-se o castelo, vou poetando trivialidades
no caderno, à minha frente a rapariga estuda o Livro
do Desassossego
,
eu estou sossegado e estudo a rapariga,
não realmente bonita mas
de íris inquisidoras e surpreendente
decerto entre quatro paredes.

Se eu fosse algum dia um poeta
seria uma obrigação curricular para os vindouros,
versos a acompanhar cigarros e namoros,
o livro com manchas de café, uma rapariga (filha desta?)
a ler o que hoje escrevi no Chiado
e alguém noutra mesa a fazer
um poema acerca disso.

AVÓS

Há avós que pedem, enrodilhados, no metro,
apertamos os sobretudos, criminosos felizes.

NEO-REALISMO

Fotografias de baptizados, férias
de verão, a quem interessa tal,
presentes, missangas, uma ruga
a mais, projectos para mais
tarde, uma tareia infantil,
cremes, pensamento positivo, a quase
queca de ontem à noite. Isto
as empregadas de balcão, entre
um e outro e outro pedido
de clientes esfomeados e estúpidos.

(de Eliot e Outras Observações, Gótica, 2003)

[P. M. tem ainda 2 poemas no livro colectivo Dez, de 1995, organizou uma Antologia da Novíssima Poesia Portuguesa em 1997, editada pela O Contador de Histórias e a CM de Tomar e as edições Quasi anunciam Vida Oculta]

13.7.03

Fazendo a ronda pelos blogs, dou com a sugestão da Esquina do Rio de visitar um novo fotógrafo. De facto Pedro Guimarães tem excelentes fotografias à distância dum clique.
EVA RUIVO

Nasceu em Lisboa, em 1963. Publicou um livro.

Perdoa, não é a falta do dinheiro
essa extravagância, nem o apetite
inconsolável de azul, voraz, sim,
gulosa do teu sexo quando a tensão
mo permite rasgo de mim
a pele o nervo a gruta os versos.

Anoto as árvores que caem, obsessiva,
debaixo do rodado de automóveis
dei-te tudo, possessiva, e fiquei
sem folhas, mas ri, atapetando
a traça dorida de teus passos
mordidos pela época e pelo trânsito.

*

Confesso: às vezes somente
a voz da tua pele apela
às verdades dormentes
ou opressas debaixo
da máquina do pensamento,
mas eu não te deixo.

Confesso: qualquer vestido
modesto de elementar singeleza
sublinhará a face sem adereços
da tua infanta, a silhueta
escondida será uma adivinha,
minha aura velada de leveza.

Confesso: nesta hora ébria
de contigo regressar à perdida
infância que resguarda
a inocência da desconfiança...
faz-me uma festa, fala comigo:
saudades eu tenho, de chorar.

(de Rosa de Jericó, 1994)

UM RECADO POR BAIXO DA PORTA

«We are the stuff
As dreams are made of, and our little life
Is rounded with a sleep»

Shakespeare. The Tempest


Parece que estou metida num vídeo
pornográfico, as ramagens batidas pelo suor e o rumor
de vozes agrícolas, regos abertos a cruzar as únicas
sílabas que a colheita, mãos de cortiça, deixou
varejadas. Dói: o sol nos muros, corpo inculto
versado na dor. Depois, certos dias obrigados
a festa, colchas no parapeito, jarras cheias
de calendário para encobrir o remorso;
a vida na província
são obscenas imagens de fuga.

Acordei, tinham passado por cima de mim
aldeias inteiras, vivalma, sequer um alguidar
com água para a mula, pele e osso, ou música
o acordeão a insuflar a tenda.

*

Que tradição a vossa! Maltratar espanholas.
O calor e o frio da minha época
jamais me hão de largar: uma coisa é
foder, outra sofrer influências
na pele, ter exércitos de terracota fundo... «Bem
que vinham de mal comer,
que não tinham aonde ir dançar...» Não
interrompa! Ninguém
que da morte saiba o sabor que ela tem,
tão sem razão, lhe suportará os versos.

Uma dinastia inteira de ossos e solidão,
raparigas do campo quem vos rezará o terço
quando um homem escreve asneiras,
mimos a raparigas levantadas ou não?

(in hífen 10, Maio de 1997 - direcção de Inês Lourenço)